O écran (porque era um écran) mostrava agora os campos dos subúrbios, plantados de vegetação purpúrea, que lembrava a árvore Sinessi, de Ella, e, segundo o que me disse Ulna, a Tren-Tehor, de Arbor. Por uma estrada azul seguia um veículo análogo ao que eu examinava quando os Milsliks nos atacaram. Seguimo-lo com os olhos. A estrada subia por uma colina até um observatório situado no cume (pelo menos, assim o acreditamos). Enquanto estas imagens desfilavam ouvimos um comentário inteiramente ininteligível para nós. O enquadramento concentrou-se sobre um veículo donde saiu um ser bípede, munido de quatro braços, com cabeça redonda. Não conseguimos distinguir-lhe os traços. Entrou no edifício.
A projeção cessou durante um instante, para logo recomeçar com um aspecto do soclass="underline" lentamente, vimo-Ia perder o brilho, ficar rubro. Compreendemos então que víamos a história do fim deste mundo. A personagem do veículo devia ter sido um cientista ou um homem importante, porque tornamos a vê-la, numerosas vezes, falando perante conselhos, manobrando estranhas máquinas, comandando exércitos e, mesmo no final, caindo fulminado, num escafandro transparente, perante as hordas Milsliks. Mas, anteriormente, vimo-lo dirigindo trabalhos, regulando minúsculos aparelhos e, por último, fechando duas portas ornadas de um sol radiante, as quais reconhecemos imediatamente. O filme terminava mostrando um desses estranhos indivíduos erguendo uma laje situada sob a alavanca que eu acionara.
Evidentemente que, passada a nossa estupefação, procuramos a laje, que encontramos sem dificuldade. Dava para uma escadaria em caracol, que descemos, após termos vestido de novo os escafandros, por uma questão de prudência. Fomos dar a uma grande divisão iluminada por uma suave luz verde. Uma porta nos conduziu a outra sala, depois a uma outra e, em seguida, a uma outra ainda. Se a primeira estava vazia, nas restantes havia cofres maciços de metal, que não conseguimos abrir. No extremo encontramos uma outra escada em caracol, que nos conduziu, ao fim de quinze minutos de subida, a uma cúpula transparente, isolada por uma comporta que dava para uma planície negra, já fora da cidade. Uma outra porta estanque permitia-nos sair. Mas os Milsliks formigavam lá fora e, portanto, não a utilizamos.
Começou então para nós uma estranha existência, que se prolongou durante um mês terrestre. Tínhamos agora ar em quantidade e Ulna descobriu que, em vez de ter trazido três caixas de munições de reserva, trouxera apenas duas e uma outra de viveres comprimidos. Esta caixa nos permitiria vivermos mais de um ano, mas tínhamos água apenas para dois meses. O «saco de escafandro» contém, realmente, um pequeno e engenhoso aparelho, que permite recuperar, nos planetas mortos, a água que está misturada nos gases liquefeitos ou solidificados, mas a carga de separação e purificação apenas dura um mês. No entanto, podíamos agora aguardar a vinda de uma expedição de socorro, pois tínhamos seguido escrupulosamente as instruções de Souilik.
Ulna, agora que já não estávamos em perigo imediato, deu livre curso ao seu desgosto Tentei consolá-a: dada a solidez do ksill, podia muito bem dar-se o caso de Akéion ainda estar vivo e ser libertado ao mesmo tempo que nós, desde que os Hiss chegassem. Não pude convencê-la. No entanto, a realidade era ainda bem mais fantástica.
Nada tínhamos para fazer senão comer, dormir e esperar.
Fizemos passar inúmeras vezes o filme do fim deste mundo, que acabamos por decorar, e abençoamos freqüentemente o gênio que, para salvar a memória da sua raça, mandara construir este refúgio. Comecei a observar os Milsliks através da cúpula transparente. Rapidamente se aperceberam da nossa presença, mas, compreendendo que as suas radiações não nos atingiam e que a cúpula era muito dura para a poderem quebrar, deixaram rapidamente de nos prestar atenção.
Passei dias inteiros a observá-los, instalado atrás da superfície transparente. Eu me comparava a um estudante de biologia, debruçado sobre o microscópio, a estudar novas formas microbianas ou novos insetos. Evidentemente, estava colocado em condições desfavoráveis, não podendo praticar experiências. Durante todo o mês que durou o nosso cativeiro nos esforçamos por tentar apreender a significação dos movimentos dos Milsliks. Creio poder afirmar que, em todo o universo, somos os seres que melhor os conhecem, excetuados eles próprios. Apesar de tudo, no último dia não tínhamos progredido mais do que no primeiro. Não descobrimos nada que se assemelhasse a um atividade ordenada, no sentido que damos a este termo, nada que se assemelhasse a um instinto, nada mesmo que lembrasse um simples tropismo. No entanto, segundo a minha experiência da ilha Sanssine, sabia que possuíam uma inteligência, se bem que sem nenhuma analogia com a nossa, e uma sensibilidade, bem mais acessível para nós.
É evidente que os Milsliks têm órgãos e sentidos, ainda que não possamos imaginar o que são. Evitavam a cúpula e só ao princípio a atacaram. Tinham consciência da nossa presença e nós reconhecíamos rapidamente os «estrangeiros» pelo fato de emitirem quando passavam próximos de nós. Alguns habitavam a cidade morta e aprendemos a distingui-los por alguns pormenores das curvas da carapaça.
Eis o que pude observar da existência dos Milsliks: moviam-se constantemente, parecendo ignorar o repouso; seguimos um, revezando-nos, Ulna e eu, durante mais de cinquenta horas. Não parou de descrever sinuosidades complicadas no solo, a pouca distância da cúpula. Raramente se viam indivíduos isolados, mas também não se podia dizer que vivessem em grupos, pois estes desagregavam-se facilmente, e determinado Mislik passava de um ajuntamento para outro sem razão aparente. Por vezes aglomeravam-se em enxames que compreendiam até cem indivíduos, os quais acabavam por se fundir numa única massa metálica. O estado de coalescência dura entre alguns segundos e várias horas. Então a massa desloca-se. Ao princípio acreditei assistir ao seu processo de reprodução, mas verifiquei que do agrupamento saía o mesmo número de indivíduos que nele tinha entrado.
As nossas observações eram dificultadas devido ao alcance relativamente curto das lâmpadas que possuíamos — para além do seu foco tudo era obscuridade — e, sobretudo, pela falta de aparelhos registradores. Teria dado tudo para ter à minha disposição um capacete amplificador de pensamento, idêntico ao que usara na cripta. Desse modo talvez pudesse ter obtido alguns esclarecimentos sobre estes monstros. Mas ali estávamos, atrás do vidro, transformados em espectadores impotentes.
Depois de muito refletir, estabeleci uma teoria sobre a origem dos Milsliks, que expus mais tarde a Assza, o qual a considerou plausível. Você sabe, evidentemente, que nas proximidades do zero absoluto se estabelece a supra-condutibilidade e que a resistência dos metais perante a corrente elétrica se torna quase nula. Assim, pode— se conjeturar terem os ancestrais dos Milsliks diferido dos atuais tanto como a primeira célula viva sobre a Terra difere de nós, devendo a sua existência a um fenômeno deste gênero. Um cristal de ferro-níquel, talvez, pôde encontrar-se situado, num mundo morto, num campo electromagnético variando muito rapidamente e de maneira complexa. Teria surgido, assim, uma espécie de vida elétrica. Uma vez isto admitido, o resto da evolução, até aos Milsliks, não se torna muito mais incompreensível que a nossa própria evolução terrestre. O tal cristal podia ter induzido, por sua vez, essa forma particular de vida noutros cristais, tendo— se produzido variações e diversificações. Se a irradiação mortal dos Mislik não é eletromagnética, não resta dúvida de que estão igualmente rodeados de um potente campo dessa natureza.