– Na corrente do relógio dele.
– Acho que nossas buscas devem ir nessa direção. Na pior das hipóteses, não deve ser tão difícil arrebentar a fechadura. O senhor tem algum outro homem robusto no local?
– Há o cocheiro, Macphail.
– Onde é que ele dorme?
– Na parte de cima do estábulo.
– Talvez precisemos dele. Bem, não podemos fazer mais nada até ver como as coisas se desenrolam. Até logo, espero vê-lo antes do amanhecer.
Era quase meia-noite quando nos instalamos entre alguns arbustos que ficavam bem em frente à porta de entrada da casa do professor. A noite estava magnífica mas fria, e ficamos embrulhados nos nossos sobretudos quentes. Havia uma brisa, as nuvens corriam no céu, encobrindo de vez em quando a meia-lua. Teria sido uma vigília desanimadora, se não fosse pela expectativa e excitação que nos faziam prosseguir, e a convicção de meu amigo de que provavelmente tínhamos chegado ao fim da estranha seqüência de acontecimentos que haviam ocupado a nossa atenção.
– Se o ciclo de nove dias é verdadeiro, então o professor estará péssimo esta noite – disse Holmes. – O fato de esses estranhos sintomas terem começado depois de sua visita a Praga, de ele estar se correspondendo secretamente com um negociante da Boêmia em Londres, que provavelmente representa alguém em Praga, e de ter recebido um pacote dele hoje, tudo isto aponta numa direção. O que ele toma e por que toma são coisas que ainda não sabemos, mas está bastante claro que procedem de Praga. Ele toma isto com uma orientação precisa que regula este sistema de nove dias, que foi o primeiro ponto que chamou minha atenção. Mas os sintomas que ele apresenta são muito estranhos. Você observou as articulações dos dedos dele?
– Tenho de admitir que não.
– Grossas e calosas, de um jeito totalmente novo em minha experiência. Observe sempre as mãos em primeiro lugar, Watson. Depois os punhos da camisa, os joelhos das calças e as botas. Articulações muito curiosas que só podem ser explicadas pela forma de locomoção observada pelo... – Holmes parou, e de repente bateu com a mão na testa: – Watson, Watson, como eu fui bobo! Parece incrível, mas deve ser verdade. Tudo indica uma direção. Como eu pude deixar de perceber a conexão de idéias? Aquelas articulações – como eu pude deixar de perceber aquelas articulações? E o cachorro! E a hera! Com certeza está na hora de me aposentar e ir morar naquela fazenda pequena dos meus sonhos. Cuidado, Watson! Lá está ele! Teremos a oportunidade de ver com nossos próprios olhos.
A porta do vestíbulo abriu-se lentamente, e vimos a figura alta do professor Presbury contra o fundo iluminado. Ele estava de roupão. Enquanto permanecia de pé, seu vulto delineado no portal estava ereto, mas inclinado para a frente, com os braços pendurados, como quando o vimos pela última vez.
Ele caminhou para a alameda, e ocorreu nele uma fantástica transformação. Ele foi se encolhendo até ficar agachado e começou a se mover apoiado nas mãos e nos pés, saltando de vez em quando, como se estivesse transbordando de energia e vitalidade. Passou pela frente da casa e depois a contornou. Quando desapareceu, Bennett passou silenciosamente pela porta do vestíbulo e o seguiu.
– Venha, Watson, venha! – exclamou Holmes, e nós passamos por entre os arbustos da maneira mais silenciosa possível, até chegarmos a um lugar de onde podíamos ver o outro lado da casa, que estava banhada pela luz da meia-lua. Podíamos ver nitidamente o professor encolhendo-se junto à parede coberta de hera. Enquanto o observávamos, ele começou a subir pela planta com incrível agilidade. Saltava de galho em galho, com firmeza nos pés e nas mãos, subindo aparentemente pelo simples prazer de sentir sua força, e sem objetivo definido. Com o roupão batendo dos lados de seu corpo, ele parecia um imenso morcego colado na parede lateral de sua própria casa, um grande remendo quadrado e escuro sobre a parede iluminada pela lua. Logo cansou-se de seu divertimento, e caindo de galho em galho, agachou-se na posição anterior e avançou em direção à cocheira, engatinhando do mesmo modo estranho de antes. O cachorro estava agora do lado de fora, latindo furiosamente, e ficou mais excitado do que nunca quando avistou o seu dono. Estava puxando a corrente e tremendo de impaciência e de raiva. O professor agachava-se deliberadamente, fora do alcance do cão, e começou a provocá-lo de todas as maneiras possíveis. Encheu as mãos com cascalho da alameda e jogou na cara do cachorro, cutucou-o com uma vara que havia apanhado, sacudiu as mãos a poucos centímetros da boca aberta do animal, e tentou, de todas as maneiras, aumentar a fúria do bicho, que já estava totalmente descontrolado. Em todas as nossas aventuras, não me lembro de ter visto um quadro mais estranho do que o desta figura impassível e ainda digna, agachando-se como uma rã no chão, e incitando a ferocidade do cachorro, enlouquecido, que saltava e se enfurecia com uma crueldade engenhosa e calculada.
E então, num instante aconteceu aquilo. Não foi a corrente que arrebentou, mas a coleira que se soltou, pois tinha sido feita para um terra-nova de pescoço mais grosso. Ouvimos o barulho do metal caindo, e no instante seguinte cachorro e homem estavam rolando juntos pelo chão, um roncando de raiva, o outro gritando em falsete um estranho guincho de terror. A vida do professor ficou por um fio. A criatura selvagem o agarrou justamente pela garganta, seus dentes morderam fundo, e o professor perdeu os sentidos antes que eu pudesse chegar até eles e separá-los. Poderia ter sido uma tarefa perigosa para nós, mas a voz e a presença de Bennett fizeram o cão enorme sossegar imediatamente. A confusão fez o sonolento e atônito cocheiro sair de seu quarto sobre a estrebaria. – Eu já o vi assim antes. Eu sabia que o cachorro iria pegá-lo mais cedo ou mais tarde.
O cão foi amarrado, e juntos carregamos o professor para o seu quarto, onde Bennett, que tinha um diploma de médico, ajudou-me a cuidar de sua garganta dilacerada. Os dentes afiados haviam passado perigosamente perto da artéria carótida, e a hemorragia era grave. Em meia hora o perigo havia passado, eu havia aplicado no paciente uma injeção de morfina e ele caiu em sono profundo. Depois, e somente depois, é que fomos capazes de olhar um para o outro e de fazer o balanço da situação.
– Acho que um cirurgião especialista deveria examiná-lo – eu disse.
– Pelo amor de Deus, não! – gritou Bennett. – No momento o escândalo está restrito à nossa própria família. Conosco está seguro. Se atravessar estas paredes, nunca mais vai parar. Pense na posição dele na universidade. Sua reputação européia, os sentimentos de sua filha.
– Perfeitamente – disse Holmes. – Acho que é possível manter o assunto entre nós e também impedir que se repita, agora que temos carta branca. A chave da corrente do relógio, sr. Bennett. Macphail vigiará o paciente e nos informará se houver alguma mudança. Vamos ver o que podemos encontrar na misteriosa caixa do professor.
Não havia muita coisa, mas havia o suficiente – um frasco vazio, outro quase cheio, uma seringa hipodérmica; muitas cartas numa caligrafia difícil de entender, e em língua estrangeira. Os selos no envelope mostraram que eram as mesmas cartas que haviam perturbado a rotina do secretário, e cada uma delas tinha como remetente “A. Dorak”, da Commercial Road. Eram simples faturas avisando que um novo frasco estava sendo enviado ao professor Presbury, ou recibos acusando o recebimento de dinheiro. Mas havia um outro envelope, numa caligrafia mais legível, e trazendo o selo austríaco, com o carimbo do correio de Praga. – Aqui está o nosso material – exclamou Holmes enquanto abria o envelope.
Prezado colega:
Desde a sua prezada visita, tenho pensado muito em seu caso e embora nas suas condições haja motivos especiais para o tratamento, mesmo assim eu recomendo cautela, já que meus resultados mostraram que este tratamento não é feito sem um certo risco.