— Falando em cabeça de lã, você pretende seguir em frente com esse plano de ir para o Deserto?
— Pretendo — respondeu a garota, com firmeza.
Egwene precisava voltar à Torre, treinar sua força. O que Siuan tinha na cabeça? Quando eu perguntar, ela deve responder com um dos seus ditados sobre barcos e peixes.
Pelo menos Egwene também ficará fora do caminho, e a garota Aiel vai cuidar dela. Talvez as Sábias possam mesmo ensinar a ela algo sobre os Sonhos. A carta que recebera fora muito surpreendente, mas não podia se dar ao luxo de seguir quase nada do que fora pedido. A longo prazo, a viagem de Egwene até o Deserto poderia ser útil.
A última fileira de tairenos abriu passagem, formando um pequeno vão, e ela e Egwene encararam a área livre sob a imensa abóbada. A inquietação dos nobres era mais evidente, ali na frente. Muitos olhavam os próprios pés, como crianças emburradas, outros encaravam o nada, mirando tudo, menos o ponto onde as duas estavam. Era ali que ficava Callandor, antes de Rand tomar posse dela. Ali, sob aquele domo, intocada por qualquer mão por mais de três mil anos, intocável por qualquer mão que não a do Dragão Renascido. Os tairenos não gostavam de admitir a existência do Coração da Pedra.
— Coitada — murmurou Egwene.
Moiraine acompanhou o olhar da moça. A Grã-lady Alteima, já no vestido rufado, capa e chapéu de um branco reluzente que era moda das viúvas tairenas, embora o marido ainda persistisse, devia ser a mais composta de todas as nobres. Era uma mulher esguia e encantadora — ainda mais por conta do sorrisinho triste — com grandes olhos castanhos e cabelos negros e compridos até a cintura. Uma mulher alta, embora Moiraine admitisse que tendia a julgar essas coisas de acordo com a própria altura, e de seios um tanto fartos. Os cairhienos não eram um povo de estatura alta, e a Aes Sedai era considerada baixa mesmo entre eles.
— Sim, coitada — disse, mas não por compaixão.
Era bom ver que Egwene ainda não tinha sofisticação suficiente para sempre ver o que havia por sob a superfície. A garota já era muito menos maleável do que deveria continuar a ser por muitos anos. Precisava ser moldada antes de endurecer.
Thom falhara com Alteima. Ou talvez tivesse se obrigado a não ver, pois parecia sentir uma estranha relutância em enfrentar mulheres. A Grã-lady Alteima era muito mais perigosa do que o marido ou o amante, ambos manipulados por ela sem notarem. Talvez fosse mais perigosa do que qualquer um em Tear, homem ou mulher. Ela em breve encontraria outros a quem usar. Era o estilo de Alteima se manter nos bastidores e manejar os cordames. Algo precisava ser feito em relação a ela.
Moiraine correu os olhos pelas fileiras de Grão-lordes e Grã-ladies até encontrar Estanda, vestida em sedas amarelas brocadas, com um babado imenso de renda marfim e um pequenino chapéu combinando. Uma rigidez marcava a beleza de seu rosto, e os olhares que ela volta e meia disparava a Alteima eram duros como ferro. O sentimento de uma pela outra ultrapassava a mera rivalidade. Se fossem homens, havia muito já teriam derramado sangue em um duelo. Se esse antagonismo pudesse ser reforçado, Alteima ficaria ocupada demais para arranjar problemas para Rand.
Por um instante, Moiraine se arrependeu de ter mandado Thom embora. Não gostava de ter que perder tempo com aquelas questões menores. Mas o menestrel tinha muita influência sobre Rand, e o rapaz precisava depender da orientação dela. Somente dela. A Luz sabia que ele já era difícil o bastante sem interferência. Thom estava ajudando o rapaz a se aquietar e governar Tear, mas o Dragão deveria estar buscando feitos maiores. Contudo, por enquanto, o assunto estava encerrado. A questão de pôr Thom Merrilin na linha podia ser contornada mais tarde. Rand era o dilema, no momento. O que pretendia anunciar?
— Onde é que ele está? Pelo que vejo, já aprendeu a primeira arte dos reis: fazer os outros esperarem.
Não percebeu que falara em voz alta até notar o olhar surpreso de Egwene. Na mesma hora, suavizou a irritação no rosto. Uma hora Rand apareceria, e ela descobriria o que ele queria fazer. Junto com todo mundo. Moiraine quase rangeu os dentes. Aquele garoto cego e tolo, avançando impetuosamente no meio da noite, sem se importar com os desfiladeiros, sem jamais pensar que poderia arrastar o mundo junto consigo. Se ao menos pudesse evitar que ele voltasse correndo para salvar a própria aldeia. Ele iria querer, mas não podia se dar ao luxo de fazê-lo agora. Talvez não soubesse do acontecido, dava para ter essa esperança.
Mat estava diante delas, do outro lado do círculo, despenteado e com a postura meio curvada, as mãos nos bolsos do casaco verde de gola alta, que usava meio desabotoado, como de costume, e as botas estavam todas arranhadas. Era um contraste com a elegância estudada à sua volta. Ele se remexeu, nervoso, quando notou que Moiraine o encarava, depois escancarou um de seus sorrisos desaforados. Pelo menos estava ali, à vista dela. Era muito exaustivo manter o olho vivo em Mat Cauthon, ele se esquivava fácil de seus espiões. Jamais dava indícios de notar a presença deles, mas os agentes de Moiraine relatavam que o rapaz escapava sorrateiro sempre que se aproximavam demais.
— Acho que ele dorme de casaco — comentou Egwene, com desaprovação na voz. — E de propósito. Onde será que está Perrin? — Ela subiu nas pontas dos pés, tentando perscrutar por sobre o ajuntamento de cabeças. — Não consigo encontrá-lo.
Franzindo o cenho, Moiraine fez uma varredura na multidão, ainda que não fosse capaz de distinguir muita coisa atrás da primeira fileira. Lan poderia estar lá atrás, entre as colunas. Mas não iria se esforçar muito nem erguer-se nas pontas dos pés, feito uma criança ansiosa. Lan ouviria um belo sermão quando pusesse as mãos nele. Com Nynaeve puxando para um lado e os ta’veren — Rand, pelo menos — aparentemente puxando para o outro, ela às vezes se perguntava como andava a força do elo entre eles dois. Pelo menos o tempo que ele passara com Rand fora útil, deu a ela mais uma corda para amarrar o jovem.
— Talvez ele esteja com Faile — continuou Egwene. — Ele não teria fugido, Moiraine. Perrin tem um senso de dever muito forte.
Quase tão forte quanto o de um Guardião, Moiraine sabia, por isso que não mantinha seus olhos-e-ouvidos tão atentos a ele como fazia com Mat.
— Faile tem tentado convencê-lo a ir embora, garota. — Era muito provável que Perrin estivesse com ela, quase sempre estava. — Não faça essa cara de surpresa. Eles conversam e discutem muito em locais onde podem ser ouvidos.
— Minha surpresa não é por você saber — retrucou Egwene, em um tom seco — mas por Faile estar tentando dissuadi-lo de algo que ele sabe que tem de fazer.
— Talvez ela não acredite nisso tanto quanto ele.
A própria Moiraine a princípio não acreditou, nem percebeu. Três ta’veren, todos da mesma idade, saídos da mesma aldeia. Ela só podia estar cega para não ter percebido que estavam conectados. Tudo ficara muito complicado depois que descobriu isso. Era como tentar equilibrar três daquelas bolas coloridas de Thom em uma única mão — e com os olhos vendados. Já vira Thom fazer isso, mas não sentia vontade de tentar. Não havia qualquer orientação a respeito da forma como eles se conectavam ou do que deveriam fazer, as Profecias nunca mencionaram companheiros.