— Rand — disse Egwene — acha mesmo que foi certo deixar os Aiel levarem todas aquelas coisas?
O rapaz se virou enquanto ela cravava os calcanhares na égua cinzenta, Bruma, e se aproximava dele pela lateral. Conseguira arranjar um vestido verde-escuro com saias justas e divididas, e uma fita de veludo verde prendia seus cabelos na altura da nuca.
Moiraine e Lan ainda se mantinham algumas passadas atrás. A mulher avançava sobre a égua branca, no vestido de montaria de saia inteira, feito de seda azul com listras verdes, os cabelos escuros presos em uma rede dourada. Lan estava montado no imenso cavalo negro de batalha, usando o manto furta-cor dos Guardiões, que sem dúvida arrancava tantos “oohs” e “aahs” quanto os Aiel. Quando a brisa balançava o manto, nuances de verde, marrom e cinza o percorriam. Parado, os tons do manto pareciam se mesclar aos de fundo, de modo que o olho enxergava através de Lan e de seu cavalo. Não era uma visão confortável.
Mat também fazia parte do cortejo, afundado na sela com um semblante resignado, tentando manter distância do Guardião e da Aes Sedai. Escolhera um capão castanho desinteressante, um animal que chamava de Pips. Era preciso atenção para perceber o peito estufado e a cernelha robusta, promessas de que Pips, com seu nariz achatado, não deixava a dever ao garanhão de Rand ou ao de Lan em termos de força e velocidade. A decisão de Mat em acompanhá-los fora surpreendente, e Rand ainda não entendia o motivo. Por amizade, talvez, mas, por outro lado, talvez não. Mat às vezes fazia as coisas por motivos que só ele entendia.
— Sua amiga Aviendha não explicou sobre “o quinto”? — perguntou ele.
— Ela mencionou alguma coisa, mas… Rand, você não acha que ela… pegou… coisas também?
Atrás de Moiraine e Lan, atrás de Mat, atrás de Rhuarc, que liderava os Aiel, os homens do Deserto caminhavam em fileiras compridas de cada um dos lados das mulas de carga, uma atrás da outra, quatro lado a lado. Quando os Aiel dominavam um clã inimigo no Deserto, era costume — ou talvez fosse lei, Rand não entendia muito bem — que levassem consigo um quinto de tudo o que havia, exceto pela comida. Eles não viam motivo para deixar de fazer o mesmo com a Pedra. Não que as mulas estivessem levando mais do que a menor fração da fração de um quinto dos tesouros de Tear. Rhuarc dizia que a ganância matara mais homens do que o aço. Os grandes cestos de vime, cobertos com carpetes e tapeçarias enrolados, não iam muito carregados. Adiante, haveria uma dura travessia pela Espinha do Mundo e uma árdua viagem pelo Deserto.
Quando é que conto para eles?, perguntou-se o rapaz. Logo, tem de ser logo. Moiraine sem dúvida consideraria um lance ousado, audacioso. Ela pensava que conhecia o plano dele todo e não fazia questão de esconder a desaprovação. Sem dúvida queria ver tudo acabado o quanto antes. Mas os Aiel… E se eles se recusarem? Bem, se isso acontecer, paciência. Preciso fazer. Quanto ao quinto… achava que não teria sido possível impedir os Aiel de levarem, mesmo que quisesse, o que não foi o caso. Aquele povo merecia as recompensas, e ele não se deu ao trabalho de ajudar os lordes tairenos a defenderem o que passaram gerações arrancando do povo.
— Eu vi que ela mostrou uma tigela de prata a Rhuarc — disse Rand, em voz alta. — Pelo barulho que o saco fez quando ela enfiou a tigela, havia mais prata lá dentro. Ou talvez ouro. Você desaprova?
— Não. — A palavra saiu lenta, com um toque de dúvida, mas depois Egwene firmou a voz. — Eu só não tinha pensado que ela era… Os tairenos não levariam apenas um quinto, se fosse o contrário. Teriam arrematado tudo que não fosse trabalho de cantaria e roubado todos os carroções para transportar a pilhagem. Não é porque os costumes de um povo são diferentes que devem ser considerados errados, Rand. Você deveria saber disso.
Rand riu baixinho. Era quase como antigamente: ele estava pronto para explicar por que e como Egwene estava errada, e ela tomava a dianteira e respondia toda a explicação não dita. O garanhão deu alguns passos dançantes, captando o humor do cavaleiro. Rand deu um tapinha no pescoço arqueado e malhado. Era um bom dia.
— É um belo cavalo — comentou a jovem. — Que nome você deu a ele?
— Jeade’en — respondeu ele, cauteloso, perdendo um pouco do bom humor.
Tinha certa vergonha do nome, de suas razões para escolhê-lo. As Jornadas de Jain, o Viajante sempre fora um de seus livros favoritos, e o grande peregrino dera a seu cavalo o nome de Jeade’en — que na Língua Antiga significava Verdadeiro Descobridor — pois o animal sempre conseguia encontrar o caminho de casa. Seria bom pensar que Jeade’en poderia um dia levá-lo de volta para casa. Bom, mas pouco provável, e ele não queria que ninguém suspeitasse qual era o motivo do nome. Não havia mais lugar em sua vida para fantasias infantis. Não havia muito lugar para qualquer coisa que não o que ele precisava fazer.
— Um bom nome — disse Egwene, distraída.
Rand sabia que ela também lera o livro, e em parte esperava que a amiga reconhecesse o nome, mas ela parecia matutar sobre outra coisa, mordendo o lábio inferior, pensativa.
Ele ficou satisfeito com o silêncio. Os últimos vestígios da cidade deram lugar a fazendas de campo isoladas, todas em estado deplorável. Nem mesmo os Congar ou os Coplin, famosos em Dois Rios pela preguiça, entre outras coisas, deixariam que o lugar ficasse tão decadente quanto essas casas de pedra bruta, com as paredes inclinadas, parecendo prestes a desabar sobre as galinhas que ciscavam a terra. Celeiros vergados se inclinavam por cima de loureiros e benjoeiros. Os telhados de ripas partidas e rachadas pareciam cheios de vazamentos. Cabras baliam, desconsoladas, em currais de pedra que pareciam ter sido erguidos às pressas ainda aquela manhã. Homens e mulheres descalços, de ombros caídos, carpiam campos abertos, sem olhar para cima nem mesmo para ver o grande grupo passar. Os cantos dos sabiás e bicos-vermelhos, que chilreavam nos pequenos arbustos, não era o suficiente para aliviar a sensação de opressão e melancolia.
Preciso fazer algo a respeito disso. Eu… Não, não agora. Vamos por partes. Já fiz o que podia por essas pessoas, nessas poucas semanas. Não há mais nada que possa fazer, por ora. Tentou não olhar para as fazendas caindo aos pedaços. Será que os bosques de oliveiras do sul estavam tão ruins quanto aquilo? O povo que trabalhava neles sequer era dono das terras, tudo pertencia aos Grão-lordes. Não. A brisa. É bom como ela alivia o calor. Posso aproveitar mais um pouquinho. Tenho que contar a eles logo.
— Rand — chamou Egwene, de supetão — quero falar com você. — Pela expressão dela, parecia sério. Aqueles olhos escuros cravados nele o faziam lembrar um pouco de Nynaeve, quando estava prestes a passar um sermão. — Quero conversar sobre Elayne.
— O que tem ela? — perguntou, desconfiado.
Tocou a bolsa, onde havia duas cartas amassadas contra um objeto pequeno e rígido. Se ambas não tivessem a mesma caligrafia fluida e elegante, ele não teria acreditado que haviam sido escritas pela mesma mulher. Depois de tantos beijos e carinhos. Era mais fácil entender os Grão-lordes do que as mulheres.