— As Donzelas da Lança e os Cães de Pedra são bem conhecidos por isso — acrescentou Seana, arrancando de Amys um olhar penetrante.
— Sou eu que estou contando, ou você? Continuemos. Alguns não podem ser levados como gai’shain, é claro. Uma Sábia, um ferreiro, uma criança, uma mulher com filhos ou uma que tenha filhos com menos de dez anos. Um gai’shain tem uma toh para com seu captor. Para os gai’shain, isso significa servir durante um ano e um dia, obedecendo com humildade, sem tocar em qualquer arma e sem praticar atos de violência.
Egwene ficou instintivamente interessada.
— Eles não tentam fugir? Eu sem dúvida tentaria. — Nunca mais deixarei que me façam prisioneira de novo!
As Sábias pareceram chocadas.
— Já aconteceu — respondeu Seana, rígida — mas não há honra nisso. Um gai’shain fugitivo seria devolvido por seu ramo para recomeçar o período de um ano e um dia. A perda da honra é tão grande que um irmão-primeiro ou irmã-primeira pode ir como gai’shain também, para dispersar a toh do ramo. Mais de um, se sentirem que a perda de ji é muito grande.
Moiraine parecia absorver tudo com muita calma, bebericando a água, mas Egwene precisava de muito esforço para não sacudir a cabeça. Os Aiel eram loucos, não havia como negar. E a coisa piorava.
— Alguns gai’shain agora fazem dessa humildade uma demonstração de arrogância — explicou Melaine, em tom desaprovador. — Pensam que assim podem obter honra, levando a obediência e a submissão ao ponto da zombaria. É uma novidade, e muito idiota. Não tem lugar no ji’e’toh.
Bair riu, um som forte e assustador, comparado à voz aguda normal.
— Idiotas não são nenhuma novidade. Quando eu era menina, os Shaarad e os Tomanelle todas as noites roubavam o gado e as cabras um do outro, então Chenda, a senhora do teto da Faixa do Mainde, foi empurrada por um jovem Haido Buscador das Águas durante uma incursão. A mulher foi até ao Vale Dobrado e exigiu que o rapaz a fizesse de gai’shain, pois não permitiria que ele ganhasse a honra de tê-la tocado, já que tinha uma faca de cozinha nas mãos durante o ocorrido. Uma faca de cozinha! Era uma arma, alegava a mulher, como se fosse uma Donzela. O rapaz não teve escolha a não ser atender à exigência, apesar de toda a zombaria quando isso aconteceu. Não dá para mandar uma senhora do teto de volta, descalça, para seu forte. Antes que o ano e o dia se passassem, os ramos Haido e Jenda trocaram lanças, e o rapazote logo se casou com a filha mais velha de Chenda. E com a segunda-mãe ainda lhe servindo como gai’shain. O garoto tentou dá-la à esposa como parte do dote, mas as duas mulheres alegaram que ele estava tentando lhes roubar a honra. Ele quase precisou tomar a própria esposa como gai’shain. Haido e Jenda quase se atacaram outra vez, antes que a toh fosse dispensada.
As mulheres Aiel quase rolavam de tanto rir, e Amys e Melaine secavam as lágrimas dos olhos.
Egwene entendeu pouca coisa da história — e com certeza não o motivo da graça — mas tentou dar uma risada educada.
Moiraine deixou a água de lado e pegou a pequena caneca de vinho.
— Ouvi homens contarem sobre lutas com os Aiel, mas nunca tinha ouvido falar disso. Sem dúvida não de um Aiel se rendendo por ter sido tocado.
— Não é rendição — retrucou Amys, enfática. — É ji’e’toh.
— Ninguém pediria para servir como gai’shain a um aguacento — disse Melaine. — Os estrangeiros não conhecem o ji’e’toh.
As Aiel trocaram olhares. Estavam incomodadas. Por quê?, perguntou-se Egwene. Ah. Para aquela gente, desconhecer o ji’e’toh devia ser como não ter honra ou boas maneiras.
— Há homens e mulheres honrados entre nós — disse Egwene. — A maioria. Sabemos distinguir certo e errado.
— É claro que sabem — murmurou Bair, em um tom que informava que aquilo estava longe de ser a mesma coisa.
— Vocês enviaram uma carta para mim em Tear — disse Moiraine — fizeram isso antes mesmo de eu chegar lá. Disseram muitas coisas, e algumas se provavam verdadeiras. Incluindo o pedido, ou melhor, a ordem para que eu as encontrasse aqui hoje. Praticamente exigiram minha presença. Mesmo assim, mais cedo, disseram “se eu viesse”. Quanta certeza vocês realmente tinham do que escreveram?
Amys suspirou e deixou de lado a caneca de vinho, mas foi Bair quem falou.
— Muita coisa é incerta, até para uma Andarilha dos Sonhos. Amys e Melaine são as melhores de nós, e nem mesmo elas enxergam tudo o que é ou tudo o que pode ser.
— O presente é muito mais claro do que o futuro, mesmo em Tel’aran’rhiod — explicou a Sábia de cabelos acobreados. — O que está acontecendo ou começando a acontecer é mais fácil de ver do que o que vai ou pode acontecer. Não vimos nada sobre Egwene ou Mat Cauthon. E a vinda do jovem que se apresenta como Rand al’Thor era uma mera possibilidade. Se ele não viesse, era certo que morreria, e os Aiel também. Mas ele veio, e, se sobreviver a Rhuidean, pelo menos alguns dos Aiel sobreviverão. Isso sabemos. Se vocês não tivessem vindo, ele teria morrido. Se Aan’allein não tivesse vindo, você teria morrido. Se você não passar pelos aros… — Ela parou de repente, como se tivesse mordido a língua.
Egwene inclinou-se para a frente, concentrada. Moiraine tinha que entrar em Rhuidean? Mas a Aes Sedai pareceu não perceber, e Seana falou depressa, para encobrir o deslize de Melaine.
— Não há ninguém com a trajetória do futuro estabelecida. O Padrão faz a mais fina renda parecer um tecido rústico e áspero, ou um emaranhado de cordões. Em Tel’aran’rhiod, é possível ver algumas formas de tessitura do destino. Nada mais.
Moiraine tomou um gole de vinho.
— Em geral é difícil traduzir a Língua Antiga. — Egwene a encarou. A Língua Antiga? Mas e os aros, o ter’angreal? Moiraine, porém, prosseguiu: — Tel’aran’rhiod significa o Mundo dos Sonhos, ou talvez o Mundo Invisível. Nenhuma das duas expressões é muito exata, é mais complexo do que isso. Aan’allein. Homem Único, mas também O Homem Que É um Povo Inteiro, além de mais duas ou três traduções. E tem as palavras corriqueiras que usamos, mas nunca pensamos no que significam na Língua Antiga. Guardiões são chamados de “Gaidin”, cujo significado era “irmãos de batalha”. Aes Sedai significava “servo de todos”. E “Aiel” era “Dedicado”, na Língua Antiga. Uma palavra mais forte do que isso, que sugere um juramento incrustado em seu cerne. Sempre me perguntei a que os Aiel são dedicados. — Os rostos das Sábias pareciam duros e inexpressivos como aço, mas Moiraine prosseguiu. — E “Aiel Jenn”, que é “O verdadeiro dedicado”, mas na verdade algo mais forte do que isso. Talvez “o único verdadeiro dedicado”. O único verdadeiro Aiel?
Ela encarou as outras com uma expressão questionadora, como se as Sábias não tivessem adquiridos olhares de pedra de repente. Nenhuma falou.
O que Moiraine estava fazendo? Egwene não pretendia permitir que a Aes Sedai arruinasse suas chances de aprender o que as Sábias tivessem a ensinar.
— Amys, podemos falar de Sonhos agora?