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O último traço de sal já desaparecera quando o vento atingiu a grande cidade de Tear, perto do rio, onde estalagens e lojas com tetos de telha ficavam grudadas nos imponentes palácios que reluziam ao luar. Mas nenhum deles era tão grande quanto a gigantesca massa, quase uma montanha, que se estendia do coração da cidade até a beira d’água. Era a Pedra de Tear, uma fortaleza lendária, o mais antigo baluarte da humanidade, erigido nos últimos dias da Ruptura do Mundo. Nações e impérios ascendiam e tombavam, eram substituídos e declinavam mais uma vez, mas a Pedra permanecia. Era a rocha sobre a qual, por três mil anos, exércitos haviam destruído lanças, espadas e corações. Por todo esse tempo, jamais sucumbira às mãos invasoras. Até então.

Na escuridão mormacenta, as ruas, tavernas e estalagens da cidade estavam quase vazias. Todos permaneciam cautelosamente entocados. Quem controlava a Pedra era o senhor de Tear, cidade e nação. Era como que sempre fora, e o povo aceitava a ideia. Ao nascer do dia, todos aclamavam o novo senhor com tanto entusiasmo quanto haviam aclamado o antigo. À noite, aninhavam-se juntos, trêmulos, apesar do calor, ao som do vento uivante que açoitava seus telhados como mil choros queixosos. Novas e estranhas esperanças dançavam em seus pensamentos, esperanças que ninguém em Tear ousara ter por cem gerações, esperanças mescladas com medos tão antigos quanto a Ruptura.

O vento açoitava o estandarte branco e comprido que tocava a lua sobre a Pedra, como se tentasse retalhá-lo. Em sua extensão marchava uma figura sinuosa que parecia cavalgar ao vento, uma serpente com pernas, coroada com uma juba dourada de leão e coberta de escamas vermelhas e douradas. O estandarte da profecia, aguardado e temido. O estandarte do Dragão. O Dragão Renascido. Precursor da salvação do mundo, mensageiro da nova Ruptura ainda por vir. Como se ultrajado por tamanha provocação, o vento batia com violência nas rígidas muralhas da Pedra. O estandarte do Dragão tremulava despreocupado em meio à noite, à espera de tempestades maiores.

Em um quarto para além da metade da subida pelo lado sul da Pedra, Perrin estava sentado em um baú no pé da cama de dossel, observando a mulher de cabelos escuros que andava de um lado para outro. Havia um quê de cautela em seus olhos dourados. Faile costumava fazer piadas e provocá-lo de leve sobre seu jeito vagaroso. Naquela noite, porém, não proferira dez palavras desde que passara pela porta. Perrin sentia o cheiro das pétalas de rosa que haviam sido colocadas, depois da lavagem, entre as dobras das roupas que a jovem usava, assim como o odor que era só dela. Naquele traço de suor limpo, ele farejou nervosismo. Faile quase nunca demonstrava preocupação. Imaginar por que a jovem o fazia agora deixou-o com uma comichão entre os ombros que nada tinha a ver com o calor da noite. As saias estreitas e divididas faziam um leve vush-vush-vush a cada passo.

Ele coçou a barba de duas semanas com irritação. Era ainda mais encaracolada do que os cabelos em sua cabeça. E também era quente. Pela centésima vez, pensou em se barbear.

— Fica bem em você — comentou Faile, de repente, parando de andar.

Desconfortável, ele deu de ombros, movimentando os membros que carregavam o peso das longas horas de trabalho na ferraria. Ela fazia isso às vezes, parecia adivinhar seus pensamentos.

— É que coça — resmungou.

Desejou ter dito aquilo com mais vigor. A barba era dele, e poderia raspá-la no momento em que quisesse.

Com a cabeça inclinada para um dos lados, ela o analisou. O nariz acentuado e maçãs do rosto proeminentes imprimiam força ao olhar, um contraste com a voz suave com a qual ela afirmou:

— Combina com você.

Perrin suspirou e deu de ombros mais uma vez. Faile não pedira a ele que mantivesse a barba, nem pediria. No entanto, o rapaz sabia que adiaria a raspagem mais uma vez. Ele se perguntou como seu amigo Mat lidaria com uma situação dessas. Talvez desse um beliscão na moça, depois um beijo e fizesse alguma observação que a faria rir até que ele a convencesse de seu ponto de vista. Mas Perrin sabia que não tinha o mesmo jeito de Mat com garotas. O amigo jamais ficaria suando por detrás de uma barba só porque uma mulher achava que ele deveria ter pelos no rosto. A não ser, talvez, que a mulher fosse Faile. Perrin suspeitava que o pai da jovem tivesse sentido uma tristeza imensa ao vê-la sair de casa, e não apenas por ser sua filha. O homem era o maior mercador de peles em Saldaea, pelo que Faile dizia, e Perrin conseguia visualizá-la convencendo os clientes a pagarem o preço que ela quisesse em todas as vendas.

— Tem algo preocupando você, Faile, e não é a minha barba. O que é?

O rosto dela assumiu um ar de cautela. Ela se recusava a olhá-lo nos olhos, preferindo examinar desdenhosamente a mobília do quarto.

Tudo era decorado com entalhes de leopardos, leões, gaviões voando e cenas de caça, desde o comprido guarda-roupas e as colunas do dossel da cama, grossas como suas pernas, até o banco estofado diante da lareira de mármore. Alguns dos animais tinham olhos vermelhos feitos de granada.

Perrin tentara convencer a majhere de que queria um quarto simples, mas a mulher não parecera compreender. Não que fosse burra ou lenta. A majhere comandava um exército de serviçais mais numeroso que os Defensores da Pedra. Não importava quem comandasse a Pedra e dominasse suas muralhas, era aquela mulher quem cuidava das questões cotidianas para que tudo funcionasse. Porém, ela enxergava o mundo com olhos tairenos. Apesar das roupas, o rapaz deveria ser algo mais do que o jovem camponês que aparentava, pois plebeus jamais ficavam hospedados na Pedra — exceto Defensores e serviçais, naturalmente. Além disso, ele estava com o grupo de Rand. Fosse amigo ou seguidor, era de alguma forma ligado ao Dragão Renascido. Para a majhere, isso o tornava tão importante quanto um Senhor da Terra, no mínimo, talvez até um Grão-senhor. Ela já ficara escandalizada o bastante por hospedá-lo naquele quarto, sem sequer uma antessala. Perrin achou que a mulher desmaiaria se ele insistisse em uma acomodação ainda mais simples. Isso se houvesse uma coisa dessas fora dos alojamentos dos serviçais ou dos Defensores. Pelo menos nada era dourado, exceto os candelabros.

Mas Faile pensava diferente.

— Você deveria estar mais bem acomodado. Você merece. Pode apostar todos os seus cobres que Mat está num quarto melhor.

— Mat gosta de cafonices. — Foi tudo o que respondeu.

— Você não sabe se impor.

Ele não continuou a discussão. Não eram seus aposentos que a faziam cheirar a desconforto, muito menos sua barba.

Depois de um instante, ela disse:

— O Lorde Dragão parece ter perdido o interesse em você. Ele agora passa o tempo todo com os Grão-lordes.

A coceira entre seus ombros piorou. Ele descobriu o que a incomodava. Tentou manter a voz suave.

— Lorde Dragão? Você está parecendo uma tairena. O nome dele é Rand.

— Ele é seu amigo, Perrin Aybara, não meu. Se é que um homem desse tem amigos. — Ela respirou fundo e prosseguiu, em um tom mais moderado: — Andei pensando em ir embora da Pedra. Ir embora de Tear. Acho que Moiraine não tentaria me impedir. As notícias sobre o… sobre Rand já começaram a sair da cidade há duas semanas. Ela não pode querer mantê-lo em segredo por muito mais tempo.

Ele mal conseguiu se impedir de dar outro suspiro.

— Também acho que ela não tentaria. Na verdade, acho que ela considera você uma complicação. É provável que lhe dê dinheiro para seguir viagem.

Ela pôs as mãos na cintura e mudou de posição, encarando-o.

— Isso é tudo o que você tem a dizer?

— O que quer que eu diga? Que quero que você fique? — A raiva em sua voz o surpreendeu. Ele sentia raiva de si mesmo, não dela. Sentia raiva porque não esperava por isso, raiva porque não sabia como lidar com a questão. Gostava de poder refletir sobre as coisas. Era fácil machucar os outros sem querer ao agir de maneira precipitada. Acabara de fazê-lo. Os olhos escuros da moça estavam arregalados de choque. Perrin tentou suavizar as palavras. — Eu quero que você fique, Faile, mas talvez seja melhor você partir. Sei que não é covarde, mas o Dragão Renascido, os Abandonados…