A luz do sol, forte e ofuscante, ultrapassou os dois antes que começassem a subir para Chaendaer. O calor os açoitava feito um porrete. Rand subia o mais depressa possível a encosta irregular, com seus aclives, declives e afloramentos rústicos. Sua garganta já se esquecera da última vez que bebera algo, e o sol secava a camisa tão rápido quanto o suor a molhava. Mat também não precisava de incentivo para correr. Havia água, lá em cima. Bair estava parada diante das tendas baixas da Sábia, segurando uma bolsa de água brilhante de condensação. Lambendo os lábios rachados, Rand tinha certeza de poder ver o brilho.
— Onde é que ele está? O que foi que você fez com ele?
O urro fez Rand parar na mesma hora. O homem de cabelos de fogo, Couladin, estava em cima de uma saliência de granito que se projetava da montanha. Havia outros do clã Shaido agrupados na base da saliência, todos encarando Mat e Rand. Alguns tinham os rostos velados.
— De quem você está falando? — gritou Rand, em resposta. Sua voz estava áspera de sede.
Os olhos de Couladin arregalaram-se, ultrajados.
— De Muradin, aguacento! Ele entrou dois dias antes de você, e mesmo assim você saiu primeiro. Ele não pode ter falhado se você sobreviveu! Você deve tê-lo matado!
Rand pensou ter ouvido um berro vindo das tendas da Sábia, mas, antes de sequer conseguir piscar, Couladin se espichou feito uma serpente e atirou uma lança para cima dele. Outras duas dispararam em seguida, vindas dos Aiel na base da saliência de granito.
Por instinto, Rand agarrou saidin e a espada forjada em fogo surgiu em suas mãos. Fez a lâmina rodopiar — Redemoinho na Montanha, um nome apropriado — fatiando em dois um par de cabos de lança. A lâmina negra de Mat apenas rodopiou e desviou a terceira.
— A prova! — uivou Couladin. — Eles adentraram Rhuidean armados! É proibido! Olhem como estão cobertos de sangue! Eles mataram Muradin! — Ao mesmo tempo em que falava, o homem arremessava outra lança. Dessa vez, foi uma entre dez outras.
Rand jogou-se para o lado, consciente de Mat saltando para o outro. Um instante antes de os dois tocarem o chão, as lanças se amontoaram onde Rand estivera parado e chocaram-se uma contra as outras. Ele rolou, levantou-se e viu as lanças cravadas no chão de pedras. Formaram um círculo perfeito que rodeava o ponto de onde ele saltara. Por um instante, até Couladin ficou atônito e paralisado.
— Parem! — gritou Bair, avançando correndo durante aquele segundo. A saia longa e pesada não atrapalhava seus movimentos, muito menos a idade. A Sábia foi descendo a encosta aos saltos, feito uma menina, apesar dos cabelos brancos. Tinha inclusive a fúria de uma menina. — A paz de Rhuidean, Couladin! — Sua voz aguda era como uma vara de ferro. — Já é a segunda vez que você tenta destruí-la. Mais uma, e será considerado fora da lei! Dou minha palavra! Você e qualquer um que erguer a mão! — Ela parou derrapando perto de Rand, encarando os Shaido com a bolsa d’água erguida feito um porrete, como se fosse acertá-los. — Quem duvidar de mim, que erga a arma! Quem fizer isto será privado de sombra, como dita o Acordo de Rhuidean, e terá negado abrigo, suporte e tenda. Seu próprio ramo vai caçá-lo feito uma besta selvagem.
Alguns dos Shaido logo desvelaram o rosto — alguns — mas Couladin não foi dissuadido.
— Eles estão armados, Bair! Entraram em Rhuidean armados! Isso é…!
— Silêncio! — Bair ergueu o punho para o homem. — Você se atreve a falar de armas? Você, que ia quebrar a Paz de Rhuidean e matar com a cara exposta? Eles não levaram arma nenhuma para lá, eu mesma garanto isso. — Ela deu as costas para o homem, em um movimento deliberado, mas o olhar que lançou a Mat e Rand não foi mais suave do que o dado a Couladin. A mulher fez uma careta para a estranha lança com lâmina de espada de Mat e murmurou: — Você encontrou isso em Rhuidean, rapaz?
— Eu ganhei, velha — rosnou Mat de volta, com a voz rouca. — Paguei por ela, e pretendo ficar com ela.
A Sábia fungou.
— Vocês dois parecem que acabaram de rolar em capim-navalha. O que…? Não, isso vocês me contam depois. — Ela encarou a espada de Rand, forjada no Poder, e estremeceu. — Livre-se disso. E mostre os sinais a eles, antes que o idiota do Couladin tente elevar os ânimos outra vez. Do jeito que ele é nervoso, o homem faria o clã inteiro quebrar as leis em um piscar de olhos. Rápido!
Rand a encarou por um instante, pasmo. Sinais? Então lembrou-se do que Rhuarc lhe mostrara, um dia, a marca de um homem que sobrevivera a Rhuidean. Deixou a espada desaparecer, desatou o laço do punho esquerdo da camisa e puxou a manga até o cotovelo.
Em volta do antebraço serpenteava uma imagem igual à do estandarte do Dragão, uma figura sinuosa de crina dourada, com escamas vermelhas e douradas. Já esperava por aquilo, sem dúvidas, mas ainda assim era um choque. A coisa parecia fazer parte de sua pele, como se a própria criatura inexistente tivesse se entranhado nele. O braço não lhe parecia diferente, mas as escamas cintilavam sob o sol como metal polido. Parecia que, se tocasse aquela crina dourada perto do pulso, sentiria cada fio de seus pelos.
Ergueu o braço assim que o descobriu, bem alto, para que Couladin e seu povo pudessem enxergar. Um burburinho se elevou entre os Shaido, e Couladin soltou um rosnado. O número de pessoas na saliência de granito aumentava, pois mais Shaido vinham correndo das tendas. Rhuarc permaneceu com Heirn e os Jindo um pouco mais acima, na encosta. Eles observavam os Shaido com desconfiança, e encaravam Rand com um ar de expectativa que o braço erguido não diminuiu. Lan estava parado a meio caminho entre os dois grupos, as mãos pousadas no cabo da espada, a expressão no rosto como a de uma tempestade prestes a cair.
Quando Rand começou a perceber que os Aiel queriam algo mais, Egwene e as outras três Sábias chegaram até ele, descendo a montanha. As mulheres Aiel pareciam desconcertadas por terem tido que correr, além de tão irritadas quanto Bair estivera. Amys cravou os olhos em Couladin, enquanto Melaine, com cabelos da cor do sol, encarou Rand com ar de reprovação. Seana parecia furiosa. Egwene, com um lenço amarrado na cabeça e caído ao redor dos ombros, encarava Mat e ele, meio consternada, meio como se tivesse pensado que nunca mais os veria.
— Homem idiota — resmungou Bair. — Todos os sinais.
Ela atirou a bolsa d’água para Mat, agarrou o braço direito de Rand e puxou a manga, expondo um desenho espelhado da criatura em seu braço esquerdo. A mulher segurou o fôlego, depois o soltou em um longo suspiro. Parecia equilibrada no fio da navalha entre o alívio e a apreensão. Não havia dúvida: ela esperava ver a segunda marca, mas ficara com medo. Amys e as outras duas Sábias ecoaram o som que ela fez quase de forma idêntica. Era estranho ver um Aiel com medo.
Rand quase riu. Não que estivesse achando a situação engraçada. “Por duas e mais duas vezes ele será marcado.” Era o que diziam as Profecias do Dragão. Uma garça marcada em cada palma, e agora isso. Uma das criaturas peculiares — Dragões, como chamava a Profecia — deveria representar “a memória perdida”. Rhuidean sem dúvida fornecera isso, a história perdida das origens Aiel. A outra era para “cobrar o preço a ser pago”. Quando será que eu terei que pagar?, perguntou-se. E quantos terão que pagar comigo? Sempre havia outros, mesmo quando ele tentava pagar sozinho.
Apreensiva ou não, Bair não parou antes de erguer o outro braço dele acima de sua cabeça e proclamar em voz alta:
— Contemplem o que nunca antes foi visto. Um Car’a’carn foi escolhido, um chefe dos chefes. Nascido de uma Donzela, ele veio de Rhuidean com a aurora, conforme a profecia, para unir os Aiel! O cumprimento da profecia começou!