— O nome dela era Shaiel? — perguntou Rand quando a mulher fez uma pausa. — De onde ela vinha? Por que veio para cá?
— Shaiel — respondeu Bair — foi o nome que ela adotou. Nunca nos deu outro nome durante todo o tempo em que a conheci. Na Língua Antiga, significa Mulher Que é Dedicada. — Mat assentiu, parecendo não perceber o que acabara de fazer. Lan o observou, pensativo, por sobre uma caneca de prata cheia d’água. — Havia uma amargura em Shaiel, no início.
Agachada, apoiando-se nos calcanhares ao lado de Rand, Amys assentiu.
— Ela falava de uma criança abandonada, um filho que amava. Um marido que não amava. Mas não dizia onde. Acho que Shaiel nunca se perdoou por ter deixado a criança. Contava pouco além do necessário. Era por nós que andava procurando, pelas Donzelas da Lança. Uma Aes Sedai de nome Gitara Moroso, que tinha o dom da Previsão, dissera a ela que um desastre se abateria sobre suas terras e seu povo, talvez sobre o mundo, se ela não fosse viver com as Donzelas da Lança sem contar a ninguém aonde estava indo. Shaiel deveria se tornar uma Donzela e não poderia retornar à própria terra até que as Donzelas fossem para Tar Valon.
A Sábia balançou a cabeça, pensativa.
— É importante que você entenda como isso soava, na época. Donzelas indo para Tar Valon? Nenhum Aiel cruzara a Muralha do Dragão desde o dia em que chegamos à Terra da Trindade. Levaria mais quatro anos até que o crime de Laman nos trouxesse de volta às terras aguacentas. E sem dúvida ninguém que não fosse Aiel jamais se tornara uma Donzela da Lança. Algumas de nós pensamos que ela tinha enlouquecido com a insolação. Mas Shaiel era teimosa, e de alguma forma acabamos concordando em deixá-la tentar.
Gitara Moroso. Uma Aes Sedai com o dom da Previsão. Já ouvira aquele nome em algum lugar, mas onde? E tinha um irmão. Um meio-irmão. Quando pequeno, sempre se perguntava como seria ter um irmão ou irmã. Quem, e onde? Mas Amys prosseguiu.
— Quase toda garota sonha em se tornar Donzela e aprende a usar arco e lança pelo menos de forma rudimentar e a lutar com mãos e pés. Mesmo assim, as que dão o passo final e desposam a lança descobrem que não sabem nada. Foi ainda mais difícil para Shaiel. Ela sabia lidar bem com o arco, mas nunca correra mais do que uma milha nem vivera do que encontrasse no caminho. Uma garota de dez anos conseguia derrotá-la, e ela sequer sabia quais plantas indicavam a presença de água. Ainda assim, Shaiel perseverou. Em um ano fez os votos à lança, tornou-se uma Donzela e foi adotada pelo ramo Chumai dos Taardad.
E em algum momento, Shaiel partira para Tar Valon com as Donzelas, para morrer nas encostas do Monte do Dragão. Era uma meia resposta, e deixava novas perguntas. Se ao menos ele tivesse visto o rosto da mãe…
— Você parece um pouco com ela — comentou Seana, como se lesse os pensamentos dele. Ela se sentara de pernas cruzadas e bebia de uma pequena caneca de vinho. — E menos com Janduin.
— Janduin? Meu pai?
— Isso — respondeu Seana. — Era o chefe do clã dos Taardad, na época, o mais jovem de que se tem lembrança. Mas tinha um jeito especial, um poder. As pessoas o escutavam e seguiam, até os que não eram do clã. Ele acabou com a rixa de sangue de duzentos anos entre os Taardad e os Nakai e fez alianças com eles e com os Reyn, com quem tinha quase uma rixa de sangue também. Quase conseguiu acabar com a desavença entre os Shaarad e os Goshien, e poderia ter levado Laman a não cortar a árvore. Por mais jovem que fosse, foi ele quem levou os Taardad, os Nakai, os Reyn e os Shaarad a tentar fazer Laman pagar sua dívida de sangue.
Foi. Então ele também tinha morrido. O rosto de Egwene estava cheio de compaixão. Rand ignorou, não queria compaixão. Como poderia sentir a perda de gente que sequer conhecera? Mas sentia.
— Como foi que Janduin morreu?
As Sábias trocaram olhares hesitantes. Por fim, Amys disse:
— Foi no início do terceiro ano da busca por Laman, quando Shaiel descobriu que estava grávida. Pela lei, ela deveria ter retornado à Terra da Trindade. Uma Donzela é proibida de carregar a lança quando carrega uma criança. Mas Janduin não conseguia proibi-la de nada. Se ela pedisse a lua em um colar, ele tentaria dar a ela. Então ela ficou e, na última luta, antes de Tar Valon, se perdeu, e a criança foi junto. Janduin não conseguiu se perdoar por não tê-la obrigado a obedecer a lei.
— Ele abriu mão de sua posição como chefe de clã — continuou Bair. — Ninguém nunca fizera tal coisa. Disseram que ele não podia fazer aquilo, mas Janduin simplesmente foi embora. Seguiu para o norte com os jovens, para caçar Trollocs e Myrddraal na Praga. É uma coisa que os homens mais desvairados fazem, assim como as Donzelas com mais coragem que juízo. Os que retornaram disseram que ele foi morto por um homem. Disseram que Janduin alegou que o homem parecia Shaiel e não ergueu a lança quando o sujeito partiu para cima dele.
Mortos, então. Ambos mortos. Ele nunca deixaria de amar Tam, nunca deixaria de pensar nele como pai, mas queria poder ter visto Janduin e Shaiel pelo menos uma vez.
Egwene tentou confortá-lo, naturalmente, como as mulheres sempre faziam. Não adiantaria tentar fazê-la compreender que ele perdera algo que nunca tivera. Como lembrança dos pais, tinha a risada baixinha de Tam al’Thor e a fraca memória das mãos suaves de Kari. Era tudo o que um homem poderia querer ou precisar. Mas sua amiga parecia decepcionada, até um pouco chateada com ele, e as Sábias de uma forma ou outra compartilhavam do sentimento, pelo que deixava transparecer a careta de desaprovação de Bair e a fungada e remexida ostentosa no xale de Melaine. As mulheres nunca entendiam. Rhuarc, Lan e Mat, sim. Eles o deixaram sozinho, como queria.
Por alguma razão, Rand estava sem apetite quando Melaine trouxe comida, então foi se deitar na beirada da tenda, com uma das almofadas sob o cotovelo, de onde podia observar a encosta e a cidade enevoada. O sol inundava o vale e as montanhas vizinhas, incendiando as sombras. O ar que remoinhava para dentro da tenda parecia vir de um forno.
Mat se aproximou depois de um tempo, já com uma camisa limpa. Sentou-se ao lado de Rand sem dizer palavra, perscrutando o vale abaixo, a estranha lança apoiada no joelho. Vez ou outra passava o dedo pela inscrição cursiva entalhada no cabo preto.
— Como está a cabeça? — perguntou Rand, e Mat deu um salto.
— É… não está doendo mais. — Ele tirou os dedos do entalhe de repente e entrelaçou as mãos no colo. — Não muito, de todo modo. Seja lá o que elas tenham feito, funcionou.
Ele fez silêncio outra vez, e Rand o deixou quieto. Também não queria falar. Quase podia sentir o tempo passando, grãos de areia em uma ampulheta caindo um por um, de tão lentamente. Mas tudo também parecia tremular, a areia prestes a explodir em uma torrente. Bobagem. Estava apenas sendo afetado pela névoa quente que subia da rocha nua da montanha. Os chefes de clã não conseguiriam chegar a Alcair Dal mais cedo, mesmo se Moiraine surgisse diante dele naquele instante. De todo modo, aqueles homens eram apenas uma parte do plano, talvez a menos importante. Pouco depois, percebeu Lan agachado em cima da mesma saliência de granito que Couladin usara, sem dar atenção ao sol. O Guardião também estava vigiando o vale. Outro homem que não queria falar.
Rand também recusou a refeição do meio-dia, embora Egwene e as Sábias se revezassem para tentar fazê-lo comer. Pareciam aceitar a recusa com bastante calma, mas, quando ele sugeriu retornar a Rhuidean para procurar Moiraine — e também Aviendha — Melaine explodiu.
— Seu idiota! Homem nenhum pode ir duas vezes para Rhuidean. Nem você retornaria vivo! Ah, morra de fome, se quiser!
Ela arremessou na cabeça dele metade de um pedaço redondo de pão. Mat o pegou no ar e começou a comer com muita calma.
— Por que você me quer vivo? — perguntou Rand a ela. — Sabe o que aquela Aes Sedai disse diante de Rhuidean. Vou destruir vocês. Por que não estão tramando com Couladin para me matar?