— Bom. Tem algo mais a dizer?
— Não, Amys.
A pausa foi mais longa desta vez. Egwene aguardou com toda a paciência que tinha, as mãos cruzadas sobre os joelhos.
— Então você é capaz de conter suas exigências quando quer — disse a Sábia, por fim — mesmo que fique se contorcendo feito um bode com coceira. Estou enganada quanto à causa? Posso sugerir uma pomada para isso, se for o caso. Não? Muito bem. Vou acompanhá-la quando você precisar encontrar suas amigas.
— Obrigada — disse Egwene, empertigada. Um bode com coceira, ora essa!
— Caso não tenha escutado da primeira vez que eu disse, o aprendizado não será fácil, nem rápido. Você acha que trabalhou nestes últimos dias. Agora prepare-se para se esforçar de verdade.
— Amys, vou aprender o quanto você puder me ensinar e vou trabalhar duro sempre que você quiser, mas, entre Rand e os Amigos das Trevas… ter tempo para aprender pode acabar se tornando um luxo, e minha bolsa pode acabar vazia.
— Eu sei — retrucou Amys, em um tom cansado. — Ele já está nos trazendo problemas. Venha. Você já perdeu tempo demais com essa sua criancice. Há assuntos de mulher a serem discutidos. As outras estão esperando.
Pela primeira vez, Egwene percebeu que Moiraine não estava entre suas cobertas. Ela estendeu a mão para pegar o vestido, mas Amys interveio:
— Isso não vai ser necessário. Não vamos muito longe. Jogue uma manta nos ombros e venha. Já trabalhei muito por Rand al’Thor e ainda preciso fazer mais depois que terminarmos.
Enrolando um cobertor nos ombros, desconfiada, Egwene acompanhou a mulher mais velha pela noite. Estava frio. Com a pele arrepiada, ela foi saltando de pé em pé, descalça no chão de pedras que quase pareciam de gelo. Depois do calor do dia, a noite parecia fria como o meio de um inverno em Dois Rios. Sua respiração se transformava em névoa fina diante da boca, absorvida imediatamente pelo ar. Frio ou não, ainda era bem seco.
Nos fundos do acampamento das Sábias havia uma pequena tenda que Egwene não vira antes. Era baixa como as outras, mas estava presa com estacas nas beiradas. Para sua surpresa, Amys começou a tirar a roupa e fez um gesto para que ela o imitasse. Cerrando os dentes para não bater o queixo, Egwene aos poucos seguiu o exemplo de Amys. Depois que a Aiel se despiu por completo, ficou ali parada, como se a noite não estivesse congelante, respirando fundo e agitando os braços. Até que entrou. Egwene disparou atrás dela com vontade.
O calor a atingiu como uma pancada na testa. Começou a suar por todos os poros.
Moiraine já estava lá, assim como as outras Sábias e Aviendha, todas nuas e suadas, sentadas em torno de um grande caldeirão de ferro cheio até a boca de pedras escuras. Tanto o caldeirão quanto as pedras irradiavam calor. A Aes Sedai parecia quase recuperada de seu suplício, mas havia uma tensão em seus olhos que não estava presente antes.
Enquanto Egwene procurava, cautelosa, um lugar para se sentar — não havia mantas, apenas chão de pedras — Aviendha fechou as mãos em concha, apanhou um punhado de água de um caldeirão menor e jogou no maior. A água evaporou com um chiado, sem deixar sequer um pontinho úmido nas pedras. Aviendha mantinha uma expressão azeda. Egwene sabia como ela se sentia. As noviças da Torre também recebiam tarefas, e ela não sabia dizer se odiava mais esfregar o chão do que as panelas, ou se era o contrário. Aquela tarefa nem de longe parecia tão onerosa.
— Precisamos discutir o que fazer em relação a Rand al’Thor — disse Bair, depois que Amys também se sentou.
— Fazer em reação a ele? — indagou Egwene, alarmada. — Ele tem os sinais. É por ele que vocês estavam procurando.
— É ele — concordou Melaine, em um tom sombrio, afastando mechas longas de cabelo louro-avermelhado do rosto empapado. — Precisamos tentar garantir que o máximo de pessoas do nosso povo sobreviva à vinda dele.
— E não menos importante — completou Seana — precisamos garantir que ele sobreviva para cumprir o restante da profecia. — Melaine cravou os olhos nela, e Seana acrescentou, em um tom paciente: — Ou nenhum de nós vai sobreviver.
— Rhuarc tinha dito que colocaria alguns Jindo de guarda-costas — comentou Egwene. — Ele mudou de ideia?
Amys balançou a cabeça.
— Não mudou. Rand al’Thor está dormindo nas tendas dos Jindo, com cem homens acordados para garantir que ele também acorde amanhã. Mas os homens quase sempre veem as coisas de maneira diferente de nós. Rhuarc vai segui-lo, talvez discorde de decisões que considere erradas, mas não vai tentar guiá-lo.
— Você acha que ele precisa ser guiado? — Moiraine arqueou uma sobrancelha ao ouvir isso, mas Egwene a ignorou e prosseguiu: — Até agora, ele fez o que tinha de fazer sem orientação.
— Rand al’Thor não conhece nossos costumes — retrucou Amys. — Existem centenas de erros que poderia cometer para virar um chefe ou um clã contra si, para fazê-los enxergar um aguacento em vez d’Aquele Que Vem Com a Aurora. Meu marido é um homem bom e um excelente chefe, mas não é um apaziguador treinado para guiar homens em fúria a baixar suas lanças. Precisamos manter alguém próximo de Rand al’Thor para sussurrar em seus ouvidos quando ele estiver prestes a dar um passo em falso. — Ela fez um gesto para que Aviendha jogasse mais água nas pedras quentes. A mulher mais jovem obedeceu, calada e graciosa.
— E temos que vigiá-lo — acrescentou Melaine, com rispidez. — Precisamos ter alguma ideia do que ele pretende fazer antes que faça. O cumprimento da Profecia de Rhuidean começou, e não pode ser interrompido perto do fim, de maneira alguma. Mas pretendo garantir que o máximo possível da nossa gente sobreviva. Como isso vai acontecer depende das intenções de Rand al’Thor.
Bair inclinou-se em direção a Egwene. Era uma mulher ossuda e musculosa.
— Você o conhece desde a infância. Ele confia em você?
— Duvido — respondeu Egwene. — Ele não confia nas pessoas como antes. — Evitava olhar para Moiraine.
— Ela nos contaria, se ele confiasse? — inquiriu Melaine. — Não quero acirrar os ânimos, mas Egwene e Moiraine são Aes Sedai. O que elas buscam pode não ser o que buscamos.
— Já servimos às Aes Sedai, um dia — retrucou Bair simplesmente. — Falhamos com elas naquela época. Talvez seja preciso servir de novo. — Melaine enrubesceu, claramente constrangida.
Moiraine não deu sinal de que vira, nem de que ouvira as palavras anteriores da mulher. Exceto por aquela tensão no olhar, a Azul parecia uma pedra de gelo.
— Vou ajudar como puder — disse, em um tom frio — mas tenho pouca influência com Rand. Hoje em dia, ele urde o Padrão a seu próprio modo.
— Então temos que vigiá-lo de perto e ter esperança. — Bair suspirou. — Aviendha, você vai encontrar Rand al’Thor todos os dias quando ele acordar. E não o deixará até que ele se deite à noite. Vai ficar mais colada nele que cabelos na cabeça. Receio que seu treinamento terá de ser feito como for possível. Vai ser um fardo para você fazer as duas coisas, mas não podemos evitar. Se conversar com Rand, sobretudo se escutá-lo, não terá problemas em permanecer perto dele. Poucos homens rejeitam uma bela mulher que os escuta. Talvez Rand deixe escapar alguma coisa.
A cada palavra, Aviendha se enrijecia mais e mais. Quando Bair terminou, ela retrucou, irritada:
— Eu não vou!
Fez-se um silêncio mortal, e todos os olhos voltaram-se para ela, mas a jovem os encarou de volta, desafiadora.
— Não vai? — retrucou Bair baixinho. — Não vai. — Ela parecia estranhar o gosto das palavras na boca.
— Aviendha — disse Egwene com delicadeza — ninguém está pedindo para você trair Elayne, só para falar com ele.
Se aquilo teve algum efeito, foi o de fazer a antiga Donzela da Lança parecer ainda mais ávida para encontrar uma arma.