— É essa a disciplina que as Donzelas aprendem, hoje em dia? — perguntou Amys, em um tom ríspido. — Se for, você vai descobrir que somos muito mais rígidas. Se houver alguma razão pela qual você não possa ficar perto de Rand al’Thor, fale. — A rebeldia de Aviendha esmoreceu um pouquinho, e ela emitiu um resmungo inaudível. A voz de Amys assumiu um tom cortante. — Fale, estou mandando!
— Eu não gosto dele! — gritou Aviendha. — Eu o odeio! Odeio!
Se Egwene não conhecesse a Aiel, teria pensado que a moça estava prestes a cair no choro. Mas as palavras a chocaram. Aviendha não podia estar falando sério.
— Não estamos pedindo para você amá-lo, nem para levá-lo para a cama — retorquiu Seana, em um tom ácido. — Estamos mandando você escutar o homem. E você vai obedecer!
— Criancice! — rosnou Amys. — Que tipo de mulher o mundo está criando hoje em dia? Será que nenhuma de vocês cresce?
Bair e Melaine foram ainda mais duras. A mais velha ameaçou amarrar Aviendha ao cavalo de Rand, no lugar da sela — e soava como se pretendesse cumprir a promessa. Melaine sugeriu que, em vez de dormir, Aviendha pudesse passar a noite cavando buracos e os tapando de volta, para clarear as ideias. Egwene percebeu que as ameaças não tinham a intenção de coagi-la; aquelas mulheres esperavam e pretendiam ser obedecidas. Qualquer trabalho inútil que Aviendha acabasse tendo que fazer seria por pura teimosia de sua parte. A teimosia pareceu diminuir com os quatro pares de olhos de Sábias a encará-la. A jovem se agachou em uma posição mais defensiva, de joelhos, mas continuava firme.
Egwene inclinou-se e pousou a mão no ombro de Aviendha.
— Você me disse que éramos quase irmãs, e acho que somos. Faria isso por mim? Pense como se fosse cuidar dele para Elayne. Você também gosta dela, eu sei. Pode contar a ele que ela me contou que quis mesmo dizer o que disse nas cartas. Ele vai gostar de saber.
O rosto de Aviendha sofreu um espasmo.
— Eu faço — disse, assumindo uma postura derrotada. — Vigio Rand por Elayne. Por Elayne.
Amys se agitou.
— Bobagem. Você vai vigiá-lo porque nós mandamos, garota. Se pensa que tem outro motivo, vai descobrir que está redondamente enganada. Mais água. O vapor está se dissipando.
Aviendha jogou mais água nas pedras, como se estivesse atirando uma lança. Egwene ficou contente em ver a energia da amiga retornando, mas pensou em adverti-la quando as duas estivessem sozinhas. Era bom ter energia, mas havia algumas mulheres — essas quatro Sábias, por exemplo, e Siuan Sanche — com as quais era sensato se controlar. Dava para gritar o dia inteiro com o Círculo das Mulheres e mesmo assim acabar fazendo a vontade delas e desejando ter ficado de boca calada.
— Agora que isso está resolvido — continuou Bair — vamos desfrutar do vapor em silêncio, enquanto podemos. Algumas de nós ainda têm muito a fazer, hoje à noite e pelas noites que virão, se pretendemos convocar uma reunião em Alcair Dal para Rand al’Thor.
— Os homens sempre arrumam um jeito de dar trabalho às mulheres — comentou Amys. — Por que Rand al’Thor seria diferente?
Fez-se silêncio na tenda, exceto pela chiadeira quando Aviendha jogava mais água nas pedras quentes. As Sábias se sentaram com as mãos nos joelhos, respirando fundo. O calor úmido, a sensação purificante e escorregadia do suor na pele, era de fato muito agradável, até relaxante. Egwene pensou que valia a pena perder um pouco de sono.
Moiraine, contudo, não parecia relaxada. Encarava o caldeirão fumegante como se visse algo mais, bem ao longe.
— Foi ruim? — perguntou Egwene, baixinho, para não incomodar as Sábias. — Rhuidean, quer dizer.
Aviendha olhou para cima depressa, mas ficou em silêncio.
— As lembranças se esvaem — disse Moiraine, também baixinho. Não desviou os olhos que encaravam o nada, e sua voz quase anulava o calor do ar, de tão fria. — A maioria já se foi. De algumas, eu já sabia. De outras… há de ser o que a Roda tecer, somos apenas o fio do Padrão. Dediquei minha vida a encontrar o Dragão Renascido, encontrar Rand, e vê-lo pronto para lutar a Última Batalha. Verei isso acontecer, custe o que custar. Nada e nem ninguém pode ser mais importante do que isso.
Trêmula, apesar do suor, Egwene fechou os olhos. A Aes Sedai não queria ser confortada. Era um bloco de gelo, não uma mulher. Egwene se acomodou e tentou recapturar aquela sensação prazerosa. Suspeitava que momentos como esse seriam raros, nos próximos dias.
36
Desorientações
Os Aiel levantaram acampamento cedo e já estavam longe de Rhuidean quando o sol ainda por nascer formava um contorno anguloso nas montanhas distantes. Em três grupos, eles contornaram Chaendaer, descendo por planícies serrilhadas intercaladas com montes, elevações de pedra e colinas de topo achatado. A terra era cinza, marrom e todas as tonalidades intermediárias, algumas partes rajadas de espirais compridas em tons de vermelho e ocre. Volta e meia, um grande arco natural se avultava enquanto os grupos se moviam para norte e oeste, ou imensas e estranhas placas de pedra se equilibravam temerariamente, quase à beira da queda. Em cada ponto que Rand olhava, montanhas recortadas se erguiam a distância. Todos os destroços da Ruptura do Mundo pareciam reunidos ali, no lugar chamado de Deserto Aiel. Onde o solo duro não era de barro rachado, amarelo, marrom ou de algum tom intermediário, era de um material escuro e pedregoso, dividido em vários pontos por valas e depressões secas. A vegetação isolada era baixa e escassa, toda de arbustos espinhosos e galhos sem folhas cheios de espinhos. As poucas flores, brancas, vermelhas ou amarelas, eram surpreendentes naquele isolamento. De vez em quando, a grama grossa cobria alguns trechos do solo, e raramente se via uma árvore — em geral atrofiada e também com espinhos. Comparado a Chaendaer e ao vale de Rhuidean, o lugar era quase exuberante. O ar era tão limpo, e a terra tão árida que Rand achava que podia ver milhas e milhas ao longe.
Aquele ar, porém, não era menos seco, o calor não era menos implacável, e o sol era uma massa de ouro fundido no alto de um céu sem nuvens. Rand enrolara uma shoufa na cabeça, em uma tentativa de se proteger do sol, e com frequência bebia da bolsa d’água na sela de Jeade’en. Por estranho que fosse, o casaco parecia ajudar. Ele não suava menos, mas a camisa permanecia molhada sob a lã vermelha, o que refrescava um pouco. Mat usava uma tira de tecido para amarrar um grande lenço branco na cabeça, feito um estranho gorro que descia pela nuca e protegia os olhos da claridade. Trazia consigo a estranha lança com lâmina de espada, a coronha enfiada no estribo.
O grupo deles consistia de cerca de quatrocentos Jindo. Rand e Mat cavalgavam à frente, lado a lado com Rhuarc e Heirn. Os Aiel caminhavam, naturalmente, levando as tendas e algumas pilhagens de Tear em mulas e cavalos de carga. Algumas Donzelas dos Jindo seguiam à frente como batedoras, e os Cães de Pedra iam atrás, vigiando a retaguarda. A coluna principal era cercada por olhos atentos, lanças a postos e arcos com flechas encaixadas. A Paz de Rhuidean supostamente valia até que todos os que tinham partido para Chaendaer retornassem os próprios fortes, mas, como Rhuarc explicara a Rand, já haviam acontecido mal-entendidos, e nem desculpas nem o preço do sangue traziam os mortos de volta dos túmulos. Rhuarc parecia achar que era ainda mais provável que algum mal-entendido ocorresse daquela vez, sem dúvida em parte por causa do grupo dos Shaido.
As terras dos Shaido ficavam depois das terras dos Taardad, na mesma direção de Chaendaer, e os Shaido avançavam em paralelo às terras dos Jindo, a cerca de um quarto de milha de distância. Segundo Rhuarc, Couladin deveria ter esperado mais um dia, para ver se o irmão voltaria. O fato de Rand ter visto Muradin depois de ele ter arrancado os próprios olhos não fazia diferença, dez dias era o tempo protocolar. Partir antes disso era abandonar quem tivesse adentrado Rhuidean. Ainda assim, Couladin pusera os Shaido para dobrar as tendas assim que viu os animais de carga dos Jindo sendo aprontados. Os Shaido viajavam com seus próprios batedores e vigias na retaguarda, aparentemente ignorando os Jindo, mas o espaço entre os dois grupos nunca aumentava mais do que trezentas passadas. Era comum haver testemunhas de talvez meia dúzia dos maiores ramos quando um homem reclamava a marca de um chefe de clã, e o povo de Couladin ultrapassava os Jindo em número: a vantagem era de pelo menos dois homens para um. Rand suspeitava que o terceiro grupo, entre os Shaido e os Taardad, fosse a razão pela qual o intervalo não se estreitava súbita e violentamente.