— Trollocs não entram na Terra da Trindade, aguacento. Pelo menos, não avançam mais que algumas milhas para além da Praga, e muito raramente. Ouvi dizer que eles chamam a Terra da Trindade de Campo da Morte. Nós caçamos Trollocs, aguacento; não o contrário.
Nada se movia. Rand largou a espada e afastou saidin. Era difícil. A doçura do Poder era quase suficiente para suplantar a imundície da mácula; o júbilo absoluto era quase o bastante para que ele não se importasse. Mat tinha razão, independentemente do que Aviendha dissesse. Mas aquilo era coisa antiga, os Trollocs já não estavam ali. Trollocs no Deserto, em um lugar onde ele iria. Não era idiota a ponto de pensar que era coincidência. Mas, se pensarem que eu sou, talvez acabem se descuidando.
Rhuarc fez um gesto para que os Jindo entrassem — eles pareceram brotar do chão — e, algum tempo depois, surgiram os outros, os Shaido, os carroções dos mascates e o grupo das Sábias. Logo correu a notícia do que havia sido encontrado, e a tensão entre os Aiel aumentou. Eles se moviam como se aguardassem um ataque iminente, talvez vindo de si próprios. Batedores se dispersaram em todas as direções. Soltando os arreios das mulas, os condutores dos carroções olhavam em volta, agitados, parecendo prontos para pular debaixo dos carroções ao primeiro berro.
Por um tempo o lugar mais parecia um formigueiro agitado. Rhuarc fez os mascates alinharem os carroções nos limites do acampamento dos Jindo. Couladin o encarou, furioso, pois aquilo significava que qualquer Shaido que quisesse negociar teria que ir até os Jindo, mas não discutiu. Talvez mesmo ele percebesse que, naquele momento, isso poderia levar todos a dançarem as lanças. As tendas dos Shaido estavam a cerca de um quarto de milha, com as Sábias no meio, como de costume. As Sábias examinaram o interior das construções, assim como Moiraine e Lan, mas, se haviam chegado a alguma conclusão, não revelaram a ninguém.
A água na Parada de Imre era um diminuto córrego atrás da fenda, alimentando um laguinho fundo e meio redondo, com cerca de duas passadas de diâmetro, que Rhuarc chamava de tanque. Suficiente para pastores, suficiente para os Jindo encherem alguns cantis. Nenhum Shaido se aproximou. Nas terras dos Taardad, os Jindo tinham preferência no direito à água. Parecia que as cabras conseguiam se hidratar apenas com as folhas grossas dos arbustos espinhentos. Rhuarc garantiu a Rand que haveria muito mais água na parada seguinte.
Kadere trouxe uma surpresa enquanto os condutores dos carroções soltavam as parelhas e apanhavam baldes dos carroções d’água. Ao sair do seu, Kadere veio acompanhado por uma jovem de cabelos escuros, em um vestido de seda e sandálias de veludo vermelho mais apropriadas para um palácio do que o Deserto. Um lenço fino enrolado quase como uma shoufa e um véu não a protegiam do sol, nem encobriam o rosto belo e pálido em formato de coração. Agarrada ao braço do mascate, ela rebolava, provocante, no caminho até o cômodo banhado de sangue; Moiraine e as outras haviam seguido para onde os gai’shain estavam erguendo o acampamento das Sábias. Quando a dupla saiu do cômodo, a jovem tremia delicadamente. Rand teve certeza de que era fingimento, bem como teve certeza de que ela pedira para ver a obra do carniceiro. A demonstração de repulsa durou no máximo dois segundos, e logo a mulher encarava os Aiel com interesse.
Parecia que o próprio Rand era uma das coisas que ela queria ver. Kadere estava pronto para levar a mulher de volta ao carroção, mas, em vez disso, ela o conduziu até Rand. Um sorriso sedutor era claramente visível por sob o véu diáfano.
— Hadnan andou me contando a seu respeito — disse a mulher, com a voz nebulosa. Ela podia estar de braços dados com o mascate, mas os olhos escuros perscrutavam Rand com audácia. — Você é o homem de quem os Aiel andam falando. Aquele Que Vem Com a Aurora.
Keille e o menestrel saíram do segundo carroção e permaneceram lado a lado, observando a distância.
— Parece que sim — respondeu Rand.
— Que estranho. — O sorriso da mulher ganhou um tom perverso e malicioso. — Achei que seria mais bonito. — Tocando o rosto de Kadere, ela suspirou. — Esse calor horrível é desgastante. Não demore.
Kadere não falou até que a mulher tivesse subido os degraus e voltado ao carroção. O chapéu fora substituído por um lenço branco comprido amarrado no alto da cabeça, com as pontas caídas pelo pescoço.
— Perdoe Isendre, bom senhor. Ela as vezes é… muito atrevida. — A voz do homem era apaziguadora, mas os olhos eram como os de uma ave de rapina. Ele hesitou, depois prosseguiu. — Ouvi outras coisas. Ouvi dizer que o senhor tirou Callandor do Coração da Pedra.
Os olhos do homem nunca se alteravam. Se ele sabia sobre Callandor, sabia que Rand era o Dragão Renascido, que era capaz de manejar o Poder Único. E os olhos não se alteravam. Um homem perigoso.
— Ouvi dizer — retrucou Rand — que não se deve acreditar em nada do que se escuta e só na metade do que se vê.
— Uma regra sábia — respondeu Kadere, depois de um instante. — Contudo, para conquistar a grandeza, um homem tem de acreditar em algo. A crença e o conhecimento pavimentam a estrada para o sucesso. O conhecimento talvez seja o artigo mais valioso do mundo. Todos buscamos o cobre do conhecimento. Peço perdão, meu bom senhor. Isendre não é uma mulher paciente. Talvez tenhamos outra oportunidade de conversar.
Antes que o homem tivesse dado três passos, Aviendha ralhou, em um tom baixo e duro:
— Você pertence a Elayne, Rand al’Thor. Por acaso olha assim para todas as mulheres que aparecem na sua frente, ou só para as que andam seminuas? Se eu tirar a roupa, vai olhar desse jeito para mim? Você pertence a Elayne!
Ele se esquecera de que a jovem estava ali.
— Eu não pertenço a ninguém, Aviendha. E quanto a Elayne? Parece que ela não está conseguindo se decidir.
— Elayne desnudou o coração a você, Rand al’Thor. Mesmo que não tenha mostrado isso na Pedra de Tear, não mandou cartas que revelaram o que sente? Você é dela, e de mais ninguém.
Rand jogou as mãos para o alto com impaciência e afastou-se da mulher a passos firmes. Pelo menos, tentou. Aviendha disparou atrás dele, uma sombra condenadora sob o fulgor do sol.
Espadas. Os Aiel podiam ter esquecido o motivo pelo qual não portavam espadas, mas mantinham o desprezo por elas. Espadas talvez a fizessem deixá-lo em paz. Procurou Lan no acampamento das Sábias e pediu que o Guardião lhe assistisse trabalhar as formas. Bair era a única das quatro à vista, e uma carranca acentuava as rugas de seu rosto. Egwene também não estava por perto. Moiraine exibia uma máscara de tranquilidade, com os olhos castanhos frios. Não tinha como dizer se ela aprovava.
Não estava ali para ofender os Aiel, então instalou-se com Lan entre as tendas das Sábias e as dos Jindo. Usou uma das espadas de treinamento que Lan levava na bagagem, com tornos atados frouxamente no lugar da lâmina. Mas o peso e as proporções estavam corretos, e ele pôde se perder nos movimentos da dança de forma em forma, a espada de prática ganhando vida em suas mãos, parecendo parte de seu corpo. Em geral era assim. Naquele dia, o sol era uma fornalha no céu, assando a umidade e a força. Aviendha acocorou-se de um dos lados, abraçando os joelhos junto ao peito e encarando-o.
Por fim, arfante, Rand baixou os braços.
— Você perdeu a concentração — comentou Lan. — É preciso mantê-la, mesmo que seus músculos virem água. O dia em que perdê-la será o dia de sua morte. E provavelmente nas mãos de um fazendeiro que vai estar tocando em uma espada pela primeira vez.
O Guardião de repente abriu um sorriso, o que parecia estranho naquele rosto empedernido.
— Sei. Bem, não sou mais um fazendeiro, não é? — Os dois haviam conquistado um público, ainda que a distância. Aiel estavam enfileirados no acampamento dos Shaido e no dos Jindo. O corpanzil cor de creme de Keille encontrava-se entre os Jindo, e o menestrel estava atrás dela, com seu manto de retalhos coloridos. Quem escolheria? Não queria que vissem que estava observando-os. — Como é que os Aiel lutam, Lan?