— Com firmeza — respondeu o Guardião, em um tom seco. — Nunca perdem a concentração. Olhe aqui. — Com a espada, o homem desenhou um círculo e setas no chão de terra seca e rachada. — Os Aiel mudam de tática de acordo com as circunstâncias, mas esta aqui é uma das preferidas. Eles se deslocam em colunas, divididos em quatro grupos. Quando encontram um inimigo, o primeiro grupo corre para pegá-lo, enquanto o segundo e o terceiro se afastam, um para cada lado, atacando os flancos e a retaguarda. O último grupo fica aguardando, na reserva, às vezes sem nem assistir à luta, a não ser pelo líder. Quando algum ponto fraco se abre, seja um espaço ou qualquer coisa, o grupo reserva ataca ali. Fim! — Ele golpeou um círculo já cheio de setas trespassadas com a espada.
— Como é que alguém derrota isso? — perguntou Rand.
— Com dificuldade. Ao primeiro embate, considerando que só com muita sorte alguém avista os Aiel antes do ataque, é preciso mandar cavaleiros para impedir, ou pelo menos atrasar, o ataque aos flancos. Se mantiver a maioria de seu contingente atrás e derrotar o ataque, é possível se voltar contra os outros grupos, um de cada vez, e derrotá-los também.
— Por que você quer aprender a combater os Aiel? — gritou Aviendha, de repente. — Você não é Aquele Que Vem Com a Aurora, aquele que vai nos reunir e recuperar nossas antigas glórias? Além do mais, se quer saber como lutar contra um Aiel, pergunte a um Aiel, não a um aguacento. O jeito dele não funciona.
— Tem funcionado bastante bem com os homens das Terras da Fronteira, de tempos em tempos. — As botas macias de Rhuarc quase não faziam barulho no chão duro. Ele trazia um cantil debaixo do braço. — Sempre somos mais permissivos com alguém que sofre uma decepção, Aviendha, mas existe um limite para o luto. Você abriu mão da lança pela obrigação que tem para com o povo e o sangue. Um dia, sem dúvida, vai forçar um chefe de clã a fazer as suas vontades, em vez das dele. Mas se em vez disso você se tornar Sábia do menor forte do menor ramo dos Taardad, a obrigação permanece, e não pode ser cumprida com arroubos de mau-humor.
Uma Sábia. Rand sentiu-se um idiota. Era óbvio que fora por isso que a jovem adentrara Rhuidean. No entanto, ele nunca teria imaginado que Aviendha escolheria abrir mão da lança. Mas aquilo sem dúvida explicava por que ela fora escolhida para espioná-lo. De súbito surpreendeu-se imaginando se ela seria capaz de canalizar. Parecia que Min era a única mulher em sua vida, desde a Noite Invernal, que não canalizava.
Rhuarc arremessou o cantil cheio d’água para ele. A água tépida desceu pela garganta feito vinho frio. Rand tentou não derramar nada no rosto para não desperdiçar, mas foi difícil.
— Achei que você ia gostar de aprender a lança — comentou Rhuarc, quando Rand enfim baixou o cantil de couro meio vazio.
Pela primeira vez, Rand percebeu que o chefe de clã portava apenas duas lanças e um par de broquéis. Não eram lanças de treinamento, isso se tal coisa existia. Em cada uma delas havia uma lâmina afiada de um pé de comprimento.
Aço ou madeira, os músculos de Rand gritavam por descanso. As pernas pediam para que ele se sentasse, e a cabeça queria repousar em uma almofada. Keille e o menestrel tinham ido embora, mas Aiel de ambos os acampamentos ainda observavam. Eles o tinham visto treinar com uma espada, o que desprezavam, ainda que fosse de madeira. Eram o povo dele. Rand não os conhecia, mas eram seu povo, e em mais de um sentido. Aviendha ainda o observava, encarando-o furiosa, como se o culpasse pela bronca que levara de Rhuarc. Não que ela tivesse qualquer coisa a ver com sua decisão de treinar, claro. Os Jindo e os Shaido o observavam, era isso.
— A montanha às vezes fica incrivelmente pesada — comentou, suspirando, e apanhou uma lança e um broquel de Rhuarc. — Quando é que a gente consegue aliviá-la um pouquinho?
— Quando morremos — Lan respondeu, simplesmente.
Forçando as pernas a se mexerem — e tentando ignorar Aviendha — Rand posicionou-se para enfrentar Rhuarc. Ainda não pretendia morrer. Não, não por um bom tempo.
Recostado em uma roda alta à sombra de um dos carroções dos mascates, Mat olhava a fileira de Jindo que observava Rand. Agora só via as costas dos homens. O rapaz era um idiota completo, pulando de um lado a outro naquele calor. Qualquer homem sensato procuraria sombra e algo para beber. Ele se ajeitou à sombra, espiou a caneca de cerveja que comprara de um dos condutores e fez uma careta. Cerveja quente feito sopa e com um gosto estranho. Pelo menos era líquido. A única outra compra, além do chapéu, fora um cachimbo de haste curta e fornilho trabalhado em prata, agora enfiado no bolso do casaco com a bolsinha de tabaco. Não estava com vontade de negociar. A menos que fosse uma passagem para fora do Deserto, artigo que os carroções dos mascates pareciam não oferecer no momento.
As vendas estavam firmes, ainda que não de cerveja. Os Aiel não se incomodavam com a temperatura do líquido, mas pareciam considerar a bebida fraca. A maioria era de Jindo, mas havia um fluxo constante de Shaido vindos do outro acampamento. Couladin e Kadere ficaram conversando aos sussurros por um longo tempo, mas não chegaram a acordo algum, pois Couladin fora embora de mãos vazias. Kadere decerto não apreciou ter perdido a negociação, e ficou encarando Couladin com aqueles olhos de gavião com tanta atenção que um Jindo precisou chamá-lo três vezes até ser ouvido.
Os Aiel não tinham muito dinheiro, mas os mascates aceitaram sem pestanejar tigelas de prata, estatuetas de ouro e belas tapeçarias de parede saqueadas de Tear, e das bolsas dos Aiel saíam pepitas de ouro e prata que chamaram a atenção de Mat. No entanto, um Aiel que perdesse nos dados podia muito bem resolver recorrer à lança. Ele ficou se perguntando onde estariam as minas. De onde um homem tirava ouro, outro também poderia tirar. Mas devia dar um trabalhão extrair o metal. Tragando uma grande golada de cerveja quente, ele se recostou de volta na roda do carroção.
Era interessante ver o que vendia e o que não vendia, e a que preço. Os Aiel não eram estúpidos a ponto de trocar um saleiro de ouro, por exemplo, por um pedaço de tecido. Tinham noção do valor das coisas e eram duros na barganha, embora tivessem os próprios desejos. Os livros saíam depressa; nem todos os queriam, mas os que buscavam os volumes limpavam todos os carroções. Rendas e veludos desapareciam assim que eram expostos, vendidos por quantias assombrosas de ouro e prata, e adornos por não menos, mas as sedas mais delicadas não tinham saída. Era mais barato negociar seda a leste, ouvira um Shaido dizer a Kadere. Um condutor corpulento de nariz quebrado tentou convencer uma Donzela Jindo a levar um bracelete de marfim entalhado. A mulher puxou da bolsa um maior, mais grosso e ainda mais ornamentado, e sugeriu ao sujeito que lutassem pelo par. O homem hesitou antes de recusar, mostrando a Mat que era ainda mais burro do que aparentava. Agulhas e alfinetes eram comprados depressa, mas as panelas e a maioria das facas recebiam olhares de desprezo; os ferreiros Aiel faziam um trabalho melhor. Tudo trocava de mãos, de frascos de perfume e sais de banho a barris de conhaque. Vinho e conhaque eram vendidos a um bom preço. Mat ficou surpreso em ouvir Heirn pedir tabaco de Dois Rios, que os mascates não tinham.
Um condutor ficou tentando oferecer aos Aiel uma besta pesada, trabalhada em ouro, sem sucesso. A arma chamou a atenção de Mat, com todos aqueles leões dourados entalhados e pedras que pareciam rubis no lugar dos olhos — pedras pequenas, mas ainda assim rubis. Claro, com um bom arco longo de Dois Rios dava para disparar seis flechadas enquanto o homem com a besta ainda estava girando a manivela da arma para preparar o segundo disparo. Por outro lado, uma besta daquele tamanho tinha um alcance de umas cem passadas a mais. Com dois homens só ajudando a recarregar as flechas e lanceiros pesados para refrear a cavalaria…