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— Vou lhe contar…

— Não vai me contar nada.

— Não tente me calar!

Ignorando Mat, os dois se afastaram por entre os carroções, discutindo em voz baixa e gesticulando irritados. Keille parecia ter sido calada com palavras duras e já se fechara em uma careta silenciosa quando a dupla desapareceu no interior de seu carroção.

Mat estremeceu. Não conseguia se imaginar compartilhando um alojamento com aquela mulher. Seria como morar com um urso com dor de dente. Já Isendre… aquele rosto, aqueles lábios, aquele andar provocante. Se conseguisse afastá-la de Kadere, talvez a mulher descobrisse um herói. Para ela, as criaturas de poeira poderiam ter dez pés de altura. Mat daria cada detalhe que pudesse lembrar ou inventar, seria um herói jovem e bonito, muito mais atraente do que um mascate velho e enfadonho. Era uma ideia a ser considerada.

O sol deslizou para trás do horizonte, e pequenas fogueiras de gravetos espinhosos formavam poças de luz amarela no meio das tendas. O cheiro de comida tomou o acampamento; carne de cabra assada com pimentas secas. O frio também dominou o lugar, o frio da noite do Deserto. Era como se o sol tivesse levado todo o calor consigo. Mat não imaginara que desejaria um manto pesado ao separar as roupas para sair da Pedra. Talvez os mascates tivessem um. Talvez Natael aceitasse apostar o dele nos dados.

Comeu junto à fogueira de Rhuarc, com Heirn e Rand. E Aviendha, claro. Os mascates estavam por perto, Natael ficou ao lado de Keille, e Isendre parecia quase enrolada em Kadere. Talvez fosse mais difícil separar Isendre do narigudo do que ele pensara — ou mais fácil. Enroscada no sujeito ou não, a mulher tinha os olhos escuros fixos em Rand, e em mais ninguém. Parecia até que ela já tinha furado as orelhas dele, marcado-o como uma ovelha de seu rebanho. Nem Rand nem Kadere pareciam notar; o mascate mal tirava os olhos de Rand. Aviendha percebia, e encarava Rand. Pelo menos o fogo provia algum calor.

Quando o assado de cabra acabou — e também um tipo de purê granuloso e amarelo, mais apimentado do que parecia — Rhuarc e Heirn encheram os cachimbos de haste curta, e o chefe de clã pediu uma canção a Natael.

Por um momento, o menestrel apenas piscou, confuso.

— Ora, é claro. É claro. Deixe-me pegar a harpa. — Sua capa se elevou com a brisa fria e seca enquanto ele sumia em direção ao carroção de Keille.

O sujeito sem dúvida era diferente de Thom Merrilin. Era raro Thom sair da cama sem a flauta, a harpa ou as duas. Mat encheu o cachimbo de prata de tabaco e já baforava alegremente quando Natael retornou e postou-se em uma pose digna de um rei. Isso sim lembrava Thom. Dedilhando um acorde, o menestrel começou: —

Doces ventos, um toque primaveril. Doces chuvas, como lágrimas do céu. Doces, os anos passam jubilosos, sem o prenúncio das tempestades por vir, sem o prenúncio da fúria dos vendavais, chuvas de aço e trovões de batalha, guerra para os corações desunir.

Era “O Vau de Midean”. Uma canção antiga sobre Manetheren, por mais estranho que fosse. Falava de guerras anteriores às Guerras dos Trollocs. Natael fez justiça à música; nada como os recitais melodiosos de Thom, sem dúvida, mas as palavras suaves atraíram um bom número de Aiel à beira da luz da fogueira. O maligno Aedomon liderou os saferianos por Manetheren sem levantar suspeitas, saqueando e incendiando, sempre avançando, até que o Rei Buiryn reuniu a força de Manetheren, e seus homens enfrentaram os saferianos no Vau de Midean. Resistiram, embora em número muito menor, por três dias de batalhas incessantes, enquanto o rio se avermelhava e os abutres enegreciam o céu. No terceiro dia, em número ainda menor, já com a esperança definhando, Buiryn e seus homens lutaram para cruzar o vau em uma viagem desesperada, abrindo caminho pela horda de Aedomon, tentando forçar o inimigo a recuar ao matar seu comandante. Porém, forças muito poderosas para se subjugar se abateram sobre eles, encurralando-os, reduzindo-os a um pequeno grupo. Eles continuaram a luta, protegendo seu rei e o estandarte da Águia Vermelha, recusando-se a se entregar mesmo quando a derrota era certa.

Natael cantou como a coragem daqueles homens tocou até o coração de Aedomon, e como, enfim, o vilão permitiu que os sobreviventes fossem libertos e retornou com seu exército para Safer, em honra deles. —

De volta pelas águas cor de sangue, marchando de cabeça erguida. Sem rendição de braço ou espada, sem rendição de alma ou coração. Que a honra, ao final, seja deles, honra que se espalhará por todas as Eras.

Ele tangeu o último acorde, e os Aiel assobiaram em aprovação, rufando broquéis com as lanças, alguns evocando gritos ululantes.

Não fora daquele jeito, claro. Mat lembrava — Luz, eu não quero! Mas a memória veio mesmo assim — ele se lembrava de aconselhar Buiryn a não aceitar a oferta, e de receber a resposta de que a menor chance já era melhor do que nenhuma. Aedomon, com a barba negra e brilhosa pendendo por sob a malha de aço que lhe encobria o rosto, afastou os lanceiros, esperando até que os homens de Manetheren estivessem perto do vau e exaustos antes que os arqueiros escondidos se erguessem e a cavalaria avançasse. Quanto a retornar a Safer… Mat achava que não. Sua última lembrança do vau era a de tentar manter-se de pé, afundado até a cintura no rio com três flechas cravadas no corpo. Mas havia um fragmento posterior. Ver Aedomon, já de barba grisalha, derrotado em uma luta acirrada em uma floresta, caindo do cavalo empinado com uma lança cravada nas costas por um garoto sem armadura e de cara lisa. Aquilo era pior do que os buracos na memória.

— Não gostou da canção? — perguntou Natael.

Mat levou um instante para perceber que o homem estava falando com Rand, não com ele. Rand esfregou as mãos, encarando a fogueira diminuta antes de responder.

— Não sei muito bem se é sábio depender da generosidade de um inimigo. O que você acha, Kadere?

O mascate hesitou, lançando um olhar à mulher pendurada em seu braço.

— Eu não penso nessas coisas — disse por fim. — Penso em lucro, não em batalhas.

Keille soltou uma risada rouca. Pelo menos até ver o sorriso de Isendre, que traía o desprezo da jovem pela mulher que dava três dela. Logo em seguida os olhos escuros da senhora roliça adquiriram um brilho perigoso por detrás das camadas de gordura.

De súbito, gritos de advertência se ergueram na escuridão, mais à frente das tendas. Os Aiel ergueram os véus. Um instante depois, Trollocs brotaram da noite, com focinhos e cabeças chifrudas, avultando-se por sobre os humanos, urrando e balançando as espadas em forma de foice, golpeando com lanças curvas e tridentes farpados, entalhando com machados com ponteiras. Myrddraal circulavam por entre eles, feito serpentes mortíferas sem olhos. O ataque aconteceu em um segundo, mas os Aiel lutaram como se tivessem tido uma hora para se preparar, enfrentando a ameaça com as lanças ágeis.

Mat teve a vaga noção de que Rand invocara aquela espada flamejante, mas logo foi arrastado para o turbilhão, manejando sua arma negra tanto como lança quanto como bastão, golpeando e retalhando, o cabo a rodopiar. Pela primeira vez, ficou satisfeito em ter as lembranças dos sonhos. O manejo daquela arma lhe parecia familiar, e ele precisava de toda a habilidade que pudesse reunir. Era insano e caótico.

Trollocs surgiam e sucumbiam diante de sua lança ou de uma lança Aiel, ou disparavam de volta para a confusão de berros, uivos e clangor de metais. Myrddraal o enfrentavam, as espadas negras se chocando contra seu aço gravado com corvos, produzindo lampejos de luz azul que mais pareciam raios. Enfrentavam-no, e depois desapareciam no tumulto. Por duas vezes, uma lança curta passou como um raio por cima de sua cabeça para golpear um Trolloc prestes a atacá-lo pelas costas. Mat enfiou a espada curta no peito de um Myrddraal e soube que iria morrer quando a criatura não caiu, apenas sorriu com aqueles lábios sem sangue, com aquele olhar sem olhos que o fazia tremer de medo até os ossos. A criatura ergueu a espada negra. Um instante depois, o Meio-homem estremeceu ao ser perfurado por lanças Aiel, um solavanco que durou a fração de tempo necessária para Mat se afastar da coisa, que caiu ainda tentando golpeá-lo, golpear o que fosse.