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Por dez vezes o cabo preto da lança, duro como ferro, desviou por pouco uma investida de Trollocs. Era obra de Aes Sedai, e ele achava aquilo ótimo. A raposa prateada em seu peito parecia pulsar, fria como gelo, como se para lembrá-lo de que também portava a marca das Aes Sedai. Que fosse, ele não ligava. Se fosse preciso trabalho de Aes Sedai para mantê-lo vivo, estava pronto para ir atrás de Moiraine feito um cachorrinho.

Não sabia dizer se a luta durara minutos ou horas, mas de súbito não se via um Myrddraal ou Trolloc ainda de pé, embora gritos e urros vindos da escuridão indicassem uma perseguição. Mortos e moribundos se amontoavam no chão, Aiel e Criaturas da Sombra. Os Meios-homens ainda se agitavam violentamente. Gemidos de dor preenchiam o ar. De repente, Mat percebeu que sentia os músculos moles feito água e que os pulmões estavam em chamas. Desabou de joelhos, ofegante, apoiado na lança. As chamas haviam transformado em fogueiras três carroções dos mascates, todos cobertos por lonas, um deles com um condutor preso à lateral por uma lança de Trolloc, e algumas tendas estavam pegando fogo. Gritos vindos do acampamento dos Shaido e brilhos fortes demais para serem fogueiras de acampamento indicavam que eles também haviam sido atacados.

Com a espada flamejante ainda nas mãos, Rand aproximou-se de Mat, ainda ajoelhado.

— Tudo bem com você?

Aviendha foi atrás, como uma sombra de Rand. Ela conseguira encontrar uma lança e um broquel e erguera um pedaço do xale no rosto, feito um véu. Até de saias a mulher parecia letal.

— Ah, estou bem — murmurou Mat, levantando-se com dificuldade. — Nada como uma dancinha com Trollocs para chamar o sono. Não é, Aviendha?

Descobrindo a face, a jovem lançou a ele um sorriso tenso. Decerto a mulher gostara da luta. Ele estava empapado de suor, e achou que toda aquela água fosse congelar em seu corpo.

Moiraine e Egwene surgiram com duas das Sábias, Amys e Bair, circulando entre os feridos. Por onde a Aes Sedai passava, pessoas tremiam ao serem Curadas, embora Moiraine às vezes mal mexesse a cabeça e logo seguisse em frente.

Rhuarc aproximou-se a passos firmes, com uma carranca.

— Más notícias? — perguntou Rand, baixinho.

O chefe de clã grunhiu.

— Além dos Trollocs, que deveriam estar a duzentas léguas ou mais de distância? Talvez. Uns cinquenta Trollocs atacaram o acampamento das Sábias. O bastante para subjugá-las, não fosse por Moiraine Sedai e pela sorte. No entanto, parece que os Shaido foram atacados por um número menor do que o que veio a nós. Só que, como o acampamento deles é o maior, deveria ter sido o contrário. Quase dá para pensar que eles foram atacados só para não virem nos ajudar. Não que a ajuda deles fosse certa, não os Shaido, mas os Trollocs e Mensageiros da Noite talvez não saibam disso.

— E, se sabiam que havia uma Aes Sedai com as Sábias — comentou Rand — esse ataque também pode ter sido para afastá-la. Eu trago inimigos comigo, Rhuarc. Lembre-se disso. Não importa onde eu esteja, meus inimigos nunca estão longe.

Isendre enfiou a cabeça para fora do carroção principal. Um instante depois, Kadere saiu, passando por ela, que voltou para dentro, fechando a porta pintada de branco atrás do homem. O mercador encarou a carnificina, a luz nos carroções em chamas deixando sombras bruxuleantes em seu rosto. O grupo ao redor de Mat foi o que mais lhe chamou a atenção. Os carroções pareciam não interessá-lo nem um pouco. Natael também desceu do carroção de Keille, e da escada foi falando com a mulher que ainda estava do lado de dentro, com os olhos fixos em Mat e nos outros.

— Imbecis — resmungou Mat, meio que para si mesmo. — Escondidos dentro dos carroções, como se isso fosse fazer alguma diferença para um Trolloc. Poderiam ter sido tostados vivos, simples assim.

— Eles ainda estão vivos — comentou Rand, e Mat percebeu que o amigo também vira o grupo. — Isso é sempre importante, Mat, quem sobrevive. É como nos dados. Não dá para ganhar sem jogar, e não dá para jogar se estiver morto. Quem sabe dizer que jogo os mascates jogam? — Ele riu baixinho, e a espada flamejante desapareceu de suas mãos.

— Eu vou dormir um pouco — disse Mat, já virando as costas. — Me acorde se os Trollocs aparecerem outra vez. Ou melhor, deixe que me matem debaixo das cobertas. Estou muito cansado para acordar.

Rand definitivamente estava perdendo o controle. Talvez os acontecimentos da noite convencessem Keille e Kadere a ir embora. Se eles fossem, Mat pretendia ir junto.

Rand deixou Moiraine examiná-lo, murmurando sozinha, embora não estivesse machucado. Com tantos feridos, a Aes Sedai não podia gastar forças com o Poder Único para aliviar o cansaço dele.

— Você foi o alvo desse ataque — comentou ela, rodeada pelos gemidos dos feridos.

Os Trollocs estavam sendo arrastados pela noite, pelos cavalos de carga e as mulas dos mascates. Os Aiel pareciam ter a intenção de deixar os Myrddraal onde estavam até que parassem de se sacudir, para certificar-se de que de fato estavam mortos. O vento se ergueu em uma rajada, como gelo seco.

— É mesmo? — indagou o rapaz.

Os olhos da Aes Sedai brilharam à luz da fogueira antes que ela se voltasse outra vez para os feridos.

Egwene aproximou-se dele, mas apenas para dizer, em um sussurro baixo e furioso:

— Seja lá o que você estiver fazendo para irritá-la, pare com isso!

O olhar que ela lançou a Aviendha, um pouco atrás de Rand, não deixava dúvida do que ela queria dizer, e a moça se afastou para ajudar Bair e Amys antes que ele pudesse explicar que não tinha feito nada. Egwene estava ridícula com aquelas duas tranças enroladinhas com fitas. Os Aiel também pareciam achar, e alguns abriam sorrisos quando ela dava as costas.

Cambaleante e trêmulo, ele procurou sua tenda. Nunca se sentira tão cansado. A espada quase não viera. Esperava que fosse o cansaço. Às vezes, falhava ao tentar tocar a Fonte, e às vezes o Poder não fazia o que ele queria, mas quase que desde o início a espada surgira praticamente sem que ele pensasse. Dessa vez, entre todas as outras… só podia ser o cansaço.

Aviendha insistiu em segui-lo até a tenda, e quando ele acordou na manhã seguinte, a jovem estava sentada do lado de fora, de pernas cruzadas, mas sem a lança e o broquel. Espiã ou não, Rand se alegrou em vê-la. Pelo menos sabia quem e o que Aviendha era, e o que sentia por ele.

38

Rostos ocultos

O Jardim das Brisas de Prata não era bem um jardim, mas uma imensa adega, grande demais até para ser chamada assim. Ficava no topo de uma colina no meio de Calpene, a mais ocidental das três penínsulas de Tanchico, abaixo do Grande Círculo. Pelo menos uma parte do nome era por causa das brisas que sopravam no lado da construção em que colunas de mármore polido rajadas de verde e balaustradas substituíam a parede, exceto no andar mais alto. Cortinas douradas de seda impermeável podiam ser baixadas, em caso de chuva. A colina formava um declive acentuado daquele lado, e as mesas ao longo das balaustradas forneciam uma ampla visão do imenso ancoradouro para além dos domos e pináculos brancos, agora apinhado de mais navios do que nunca. Tanchico precisava de tudo, desesperadamente, de modo que ali se podia ganhar muito ouro — até que o ouro e o tempo se acabassem.

Com seus lampiões dourados e tetos marchetados com gregas de latão lustradas para emitir um brilho amarelado, além dos serviçais — homens e mulheres, escolhidos pela graça, beleza e discrição — o Jardim das Brisas de Prata já era a adega mais cara da cidade mesmo antes de os problemas começarem. Atualmente, o preço era ultrajante. Porém, ainda recebia visitas dos que negociavam altas somas, dos que negociavam poder e influência ou dos que pensavam negociar. Em alguns aspectos havia menos para se negociar do que antes, em outros, mais.