Tinha de haver uma saída, mas, para cada canto que olhava, ele só via mais armadilhas.
Liandrin percorreu os corredores como um fantasma, sem grandes dificuldades em evitar serviçais e Mantos-brancos. Ao sair por uma pequena porta dos fundos que dava para um beco estreito atrás do palácio, o homem alto e jovem de guarda a encarou com um misto de alívio e apreensão. O truquezinho de deixar os outros abertos às suas sugestões — só um pinguinho do açoite do Poder — não fora necessário com Carridin, mas não teve problemas em convencer aquele idiota a autorizar sua entrada. Sorrindo, ela fez um gesto para que o homem se aproximasse. O grosseirão desengonçado abriu um sorriso largo, como se esperasse um beijo. O sorriso congelou quando a faca de Liandrin atravessou seu olho.
Ela deu um salto ágil para trás quando o homem caiu. Assim, o guarda não falaria dela nem por acidente. Nem uma mísera gotinha de sangue sujara suas mãos. Ela desejou ter a habilidade de Chesmal para matar com o Poder, ou mesmo o talento inferior de Rianna. Era estranho que a capacidade de matar com o Poder, de parar um coração ou ferver o sangue nas veias, fosse tão intimamente ligada à Cura. Liandrin não era capaz de Curar mais do que arranhões ou hematomas — não que tivesse qualquer interesse nisso.
Sua liteira, coberta de verniz vermelho e com entalhes em ouro e marfim, a aguardava no fim da viela junto com os guarda-costas, uma dúzia de homens enormes com expressões de lobos famintos. Uma vez na rua, eles abriram caminho sem esforço pela multidão, as lanças golpeando quem não se afastasse depressa o bastante. Eram todos devotos do Grande Senhor das Trevas, sem dúvida, e, ainda que não soubessem muito bem quem ela era, sabiam que outros homens haviam desaparecido, homens que tinham falhado em servi-la de maneira apropriada.
A casa que Liandrin e as outras haviam ocupado, dois amplos andares de pedra, massa branca e teto reto em uma encosta na base de Verana, a península mais a leste de Tanchico, pertencia a um mercador que também prestara juramentos ao Grande Senhor. Liandrin preferiria um palácio. Um dia, talvez, possuísse o Palácio do Rei, em Maseta. Crescera invejando os palácios dos Lordes, mas por que deveria se contentar com um daqueles? Apesar de suas preferências, no entanto, fazia mais sentido manterem-se um tempo escondidas. Não tinha como as idiotas de Tar Valon suspeitarem de sua presença em Tarabon, mas a Torre sem dúvida ainda estava atrás delas, e as menininhas de Siuan Sanche poderiam estar farejando por qualquer lugar.
Os portões se abriram para um pequeno pátio, com janelas apenas no andar superior. Liandrin deixou os guardas e carregadores do lado de fora e correu para dentro. O mercador fornecera alguns poucos serviçais — todos jurados ao Grande Senhor, garantiu o homem, mas um número pequeno demais para servir a onze mulheres que quase não saíam. Uma das servas, uma mulher bonita, robusta e de tranças escuras chamada Gyldin, varria os azulejos vermelhos e brancos do saguão de entrada quando Liandrin chegou.
— Onde estão as outras? — inquiriu a recém-chegada.
— Na sala de estar da frente.
Gyldin apontou para a porta dupla em arco à direita, como se Liandrin pudesse não saber onde a sala ficava.
Liandrin apertou os lábios. A mulher nunca fazia mesuras ou utilizava pronomes de tratamento. A bem da verdade, Gyldin não sabia quem Liandrin de fato era, mas sem dúvida deveria saber que era importante o suficiente para dar ordens e ser obedecida, para fazer aquele mercador gordo se curvar, se arrastar e mandar a família embora para alguma choupana.
— Você deveria estar limpando, sim? Não circulando por aí? Ora, então limpe! Tem poeira para tudo que é lado. Ora, sua vaca, se eu encontrar um grãozinho de poeira esta noite mando espancar você! — Liandrin cerrou os dentes com força. Passara tanto tempo imitando a forma como os nobre e ricos falavam que às vezes esquecia que seu pai vendia frutas em um carrinho. No entanto, em momentos de ira o linguajar da plebe lhe escapava. Era muita tensão. Muita espera. — Vá trabalhar! — gritou por fim, então entrou na sala de estar e bateu a porta atrás de si.
As outras não estavam todas lá, o que a deixou ainda mais irritada, mas havia o bastante delas. Eldrith Jhondar, de rosto redondo, estava sentada a uma mesa marchetada em lápis-lazúli sob uma tapeçaria presa a uma parede caiada, e, com muita atenção, tomava notas a partir de um manuscrito esfarrapado. Vez ou outra, a mulher, distraída, limpava a ponta da pena na manga do vestido de lã escura. Marillin Gemalphin estava sentada junto a uma das janelas estreitas, os olhos azuis e sonhadores fixos na diminuta fonte no pequeno pátio, afagando, absorta, as orelhas de um gato amarelo e magro, aparentemente alheia aos pelos que o bicho deixava em seu vestido de seda verde. Ela e Eldrith eram Marrons. Mesmo assim, caso Marillin algum dia descobrisse que Eldrith era a razão pela qual os gatos de rua que ela trazia continuavam a desaparecer, haveria problemas.
Elas tinham sido Marrons. Às vezes era difícil lembrar que já não eram, ou que ela mesma já não era Vermelha. Muitas das características óbvias que as identificavam como integrantes das antigas Ajahs ainda permaneciam, mesmo agora que todas estavam abertamente comprometidas com a Ajah Negra. As duas antigas Verdes, por exemplo: de pele acobreada e pescoço longo feito o de um cisne, Jeaine Caide usava o vestido de seda mais fino e justo que conseguia arranjar — o de hoje era branco — e dava risada, dizendo que os vestidos teriam de servir, já que não havia qualquer coisa disponível em Tarabon para atrair a atenção dos homens. Jeaine era de Arad Doman, e as mulheres domanesas eram conhecidas por suas roupas escandalosas. Asne Zeramene, com os olhos escuros e oblíquos e o nariz pronunciado, parecia quase tímida e retraída em um traje cinza claro, de corte simples e gola alta, mas Liandrin já a ouvira se lamentar mais de uma vez por ter deixado os Guardiões para trás. Quanto a Rianna Andomeran… Os cabelos negros com uma mecha completamente branca por sobre a orelha emolduravam um rosto com a expressão confiante, fria e arrogante que apenas uma Branca era capaz de exibir.
— Pronto — anunciou Liandrin. — Jaichim Carridin deslocará os Mantos-brancos para o Palácio da Panarca e o ocupará para nós. Ele ainda não sabe que teremos convidados… é claro. — Algumas fizeram caretas; a mudança de Ajah não alterara os sentimentos de nenhuma delas em relação aos homens que odiavam mulheres capazes de canalizar. — Tem um detalhe interessante. O homem achou que eu tinha ido até lá para matá-lo. Por ter falhado em acabar com Rand al’Thor.
— Isso não faz sentido — comentou Asne, de cenho franzido. — Temos que prendê-lo, controlá-lo, não matá-lo. — De repente ela soltou uma risada baixa e suave, recostando-se de volta na cadeira. — Isso se houver um meio de controlá-lo. E olha que eu não me importaria de prendê-lo a mim. É um rapaz muito bonito, pelo pouco que vi.
Liandrin fungou. Não gostava nem um pouco de homens.
Rianna balançou a cabeça, preocupada.
— Faz sentido e é preocupante. As ordens que recebemos da Torre foram explícitas, mas também está claro que Carridin recebeu outras. Posso apenas pressupor que haja divergências entre os Abandonados.
— Os Abandonados — murmurou Jeaine, cruzando os braços com irritação. A seda fina e branca moldava os seios, deixando-os ainda mais à mostra. — De que adiantam as promessas de governarmos o mundo quando o Grande Senhor retornar se acabarmos no meio das disputas entre Abandonados? Será que alguém acredita que temos condições de enfrentar qualquer um deles?