Выбрать главу

Quais eram as chances de receber todos os cinco? A sorte funcionava melhor com as coisas aleatórias, como o dado, mas talvez um pouco mais dela já começasse a se espalhar para as cartas.

— Que a Luz faça cinzas dos meus ossos se não for isso — resmungou. Ou foi o que tentou resmungar.

— Muito bem — quase gritou Estean. — Desta vez não dá para negar. Isso era Língua Antiga. Algo sobre queimar e ossos. — Ele sorriu para a mesa. — Meu tutor ficaria orgulhoso. Vou mandar um presente a ele. Se conseguir descobrir para onde foi.

Era esperado dos nobres que soubessem falar a Língua Antiga, embora na verdade poucos soubessem mais do que Estean parecia saber. Os jovens lordes começaram a debater a respeito do que Mat dissera, exatamente. Pareciam pensar que tinha sido um comentário acerca do calor.

Arrepios percorreram a pele do rapaz andoriano, enquanto ele tentava recordar as palavras que tinham acabado de sair de sua boca. Uma sequência de baboseiras, mas quase parecia que ele as deveria compreender. Que a queime, Moiraine! Se ela me deixasse em paz, eu não teria a memória cheia de buracos onde cabem carroção e junta, e não estaria declamando… seja lá que porcaria for isso! Estaria ordenhando as vacas do pai, não caminhando pelo mundo com uma bolsa cheia de dinheiro, mas tentou ignorar essa parte.

— Vocês vieram aqui para jogar — disse, ríspido — ou para tagarelar como velhas tricoteiras?

— Para jogar — respondeu Baran, áspero. — Três coroas, ouro! — Ele jogou as coroas no bolo.

— Cubro e dou mais três. — Estean soltou um soluço e acrescentou seis coroas de ouro à pilha.

Sufocando um sorriso, Mat esqueceu-se da Língua Antiga. Foi muito fácil, não queria pensar no assunto. Além do mais, se os homens estavam começando com tanta vontade, talvez ganhasse o suficiente naquela mão para partir logo de manhã. E, se ele for louco o bastante para começar uma guerra, vou sair daqui nem que seja a pé.

Lá fora, um galo cantou na escuridão. Mat se remexeu, desconfortável, e disse a si mesmo para não ser bobo. Ninguém iria morrer.

Ele baixou os olhos às cartas… e piscou. A chama da Amyrlin fora substituída por uma faca. Enquanto tentava se convencer de que estava cansado e vendo coisas, a figura cravou a lâmina diminuta no dorso de sua mão.

Com um grito rouco, ele atirou as cartas para longe e se jogou para trás, virando a cadeira e chutando a mesa com ambos os pés ao cair. O ar pareceu ficar grosso como mel. Tudo se movia como se o tempo tivesse desacelerado, mas, ao mesmo tempo, tudo parecia acontecer de uma vez só. Outros gritos ecoaram o dele, berros vazios reverberando no interior de uma caverna. Ele e a cadeira flutuaram de volta e para o chão, a mesa se desvirou.

A Governante de Chamas pairava no ar, crescendo, encarando-o com um sorriso cruel. Já quase do tamanho real, começou a sair da carta. Ainda era uma forma pintada, sem profundidade, mas tentava alcançá-lo com a lâmina tingida de vermelho com seu sangue, como se já tivesse sido cravada em seu coração. Ao lado dela, o Governante de Taças começou a crescer, o Grão-lorde taireno de espada embainhada.

Mat flutuava, mas de alguma forma conseguiu alcançar a adaga em sua manga esquerda e, com o mesmo movimento, jogou-a com violência bem no coração da Amyrlin. Isso se a coisa tivesse coração. A segunda faca chegou à sua mão esquerda com muita fluidez e deslizou para fora dela ainda mais suavemente. As duas lâminas pairavam no ar, feito plumas. Ele quis gritar, mas o primeiro berro de choque e ultraje ainda enchia sua boca. O Governante de Barras se expandia ao lado das duas primeiras cartas, a Rainha de Andor agarrada a uma barra que mais parecia um porrete, os cabelos louro-acobreados emoldurando o rosnado enlouquecido da mulher.

Ele ainda caía, ainda soltava aquele longo grito. A Amyrlin se libertara da carta, e o Grão-lorde avançava depressa com a espada. As formas planas moviam-se quase tão lentamente quanto ele. Mat tinha prova de que o metal nas mãos delas era cortante, e sem dúvida a barra seria capaz de quebrar um crânio. O crânio dele.

As adagas que arremessara deslocavam-se como se estivessem afundadas em geleia. Tinha certeza de que o galo cantara para ele. Não importava o que o pai fosse dizer, a profecia fora real. Mas ele não iria desistir e morrer. De algum jeito tinha puxado mais duas adagas do casaco, estava com uma em cada mão. Esforçando-se para dar um giro no ar e equilibrar os pés, atirou uma das facas na figura de cabelos dourados carregando o porrete. Segurou a outra lâmina enquanto tentava se virar e pousar no chão, pronto para enfrentar…

O mundo deu uma guinada e voltou à velocidade normal, e ele aterrissou de lado, todo contorcido, com tanta força que soltou todo o ar. Desesperado, pôs-se de pé e puxou mais uma adaga do casaco. Não dava para carregar mais facas do que o necessário, dizia Thom. Mas nenhuma foi necessária.

Por um instante, pensou que as cartas e figuras tivessem desaparecido. Ou talvez que tivesse imaginado aquilo tudo. Talvez ele é que estivesse enlouquecendo. Então viu as cartas, de volta ao tamanho original, presas por suas facas, ainda trêmulas, aos painéis de madeira escura. Respirou, áspera e profundamente.

A mesa estava caída, e as moedas ainda giravam pelo chão, onde fidalgotes e serviçais se agachavam em meio às cartas espalhadas. Boquiabertos, encaravam Mat e as facas que ele tinha nas mãos e as presas à parede com olhos igualmente arregalados. Estean agarrou uma jarra de prata que escapara ilesa e começou a virar o vinho goela abaixo, deixando escorrer o excesso pelo queixo e peito.

— Não é só porque você não tem cartas para ganhar — comentou Edorion, com a voz rouca — que há necessidade de… — Ele parou e estremeceu.

— Vocês também viram. — Mat deslizou as facas de volta para as bainhas. Um filete de sangue escorria do ferimento diminuto, molhando o dorso de sua mão. — Não finjam que ficaram cegos!

— Eu não vi nada — retrucou Reimon, inexpressivo. — Nada!

O homem começou a se arrastar pelo chão recolhendo ouro e prata, concentrado, como se as moedas fossem a coisa mais importante do mundo. Os outros faziam o mesmo, exceto Estean, que cambaleava conferindo as jarras caídas para ver se alguma ainda continha vinho. Um dos serviçais escondia o rosto entre as mãos. O outro, de olhos fechados, parecia rezar em um gemido baixo e resfolegante.

Praguejando, Mat avançou até onde as facas prendiam as três cartas ao painel. Eram apenas cartas de baralho outra vez, só papel duro com o verniz rachado. Mas a figura da Amyrlin ainda segurava uma adaga, em vez da chama. Sentiu gosto de sangue e percebeu que estava chupando o corte no dorso da mão.

Mais que depressa, arrancou as facas da parede, cortando cada uma das cartas ao meio antes de guardar as adagas. Logo em seguida, vasculhou as cartas espalhadas no chão, encontrou os governantes de Moedas e de Ventos e os rasgou também. Sentiu-se um pouco tolo — estava tudo acabado, as cartas eram apenas cartas outra vez — mas não pôde evitar.

Nenhum dos jovens lordes que engatinhavam pelo chão tentou impedi-lo. Saíam de sua frente sem sequer olhar para ele. Não haveria mais jogatina hoje, decerto nem durante as próximas noites. Pelo menos, não com ele. O que quer que tivesse acontecido, estava claro que ele fora o alvo. E estava ainda mais claro que aquilo fora feito com o Poder Único. Ninguém queria ter nada a ver com isso.

— Que o queime, Rand! — murmurou, entre dentes. — Se você for enlouquecer, me deixe fora disso!

Seu cachimbo estava em dois pedaços. Arrancara a haste da base com os dentes. Irritado, agarrou a bolsa no chão e saiu do salão pisando forte.

Em seu quarto escuro, Rand se remexia, desconfortável, sobre uma cama onde caberiam cinco pessoas. Estava sonhando.