Montes baixos e cobertos de grama marcavam as gerações de Aybaras enterrados ali. A mais antiga das lápides de madeira entalhada, rachada e pouco legível, era datada de quase trezentos anos antes, acima de covas indistinguíveis no solo liso. Mas eram os montinhos suavizados pelas chuvas, ainda quase sem grama, que apunhalavam seu coração. Gerações de Aybaras tinham sido enterradas ali, mas nunca quatorze de uma só vez. Tia Neain jazia acima da cova de tio Carlin, um pouco mais antiga, com os dois filhos ao lado. A tia-avó, Ealsin, estava na mesma fileira que o tio Eward e a tia Magde, com seus três filhos. A fileira mais comprida continha sua mãe e seu pai, além de Adora, Deselle e o pequeno Paet. Uma fileira extensa de montinhos de terra nua, ainda úmida, ainda quase sem grama. Perrin tocou as flechas que restavam na aljava e as contou. Dezessete. Muitas tinham sido danificadas, e só valia a pena consertá-las por causa das pontas de aço. Não tinha tempo para fazer as próprias ponteiras em breve teria que visitar o flecheiro de Campo de Emond. Buel Dowtry fazia boas flechas, bem melhores que as de Tam.
Um farfalhar baixo vindo de trás o fez fungar.
— O que é que foi, Dannil? — perguntou, sem se virar.
Um arquejar breve, um momento de surpresa e susto, antes que Dannil Lewin dissesse:
— A Lady está aqui, Perrin.
Ninguém se acostumava com o fato de ele saber quem estava perto antes de ver, ainda mais no escuro, mas Perrin já não ligava para o que os outros consideravam estranho.
Ele franziu o cenho, olhando por cima do ombro. Dannil parecia mais magro. Os fazendeiros não tinham o suficiente para alimentar grupos tão grandes, e, com as caçadas, as refeições ou eram banquetes ou eram inexistentes. Em geral, inexistentes.
— Que Lady?
— Lady Faile. E também Lorde Luc. Vieram de Campo de Emond.
Perrin se levantou devagar e caminhou a passos largos, forçando Dannil a se apressar para acompanhá-lo. Conseguiu não olhar para a casa. As vigas de madeira chamuscadas e as chaminés cheias de fuligem que um dia foram o lar onde ele cresceu. Porém, vasculhou as árvores em busca dos batedores, os que estavam mais próximos da fazenda. Como era tão próxima da Floresta das Águas, a terra ali tinha muitos carvalhos altos e cicutas, além de freixos e baios de bom tamanho. A folhagem espessa escondia bem os rapazes, e a lã grossa das roupas de fazenda ajudava. Então até ele teve dificuldade em localizá-los. Teria de conversar com os rapazes em breve; a função deles era garantir que ninguém se aproximasse sem ser anunciado. Nem mesmo Faile e aquele Lorde Luc.
O acampamento, disposto em um amplo matagal que ele um dia fingira ser uma selva distante, era um espaço bruto entre a vegetação rasteira, com alguns cobertores estendidos sobre cordas, para formar abrigos, e outros espalhados no chão entre as pequenas fogueiras. Os galhos também gotejavam por ali. A maioria dos quase cinquenta homens do acampamento, todos jovens, estava de barba. Fosse para imitar Perrin, ou porque era desagradável se barbear com água fria. Eram bons caçadores — os que não eram, Perrin mandara de volta para casa — porém, estavam desacostumados a passar mais de uma ou duas noites na natureza. E desacostumados com o que ele os estava mandando fazer.
Lá estavam eles, parados diante de Faile e Luc, encarando-os de boca aberta, apenas quatro ou cinco com o arco longo nas mãos. O restante dos arcos jazia sobre a roupa de cama, assim como quase todas as aljavas. Luc permanecia absorto, mexendo nas rédeas de um garanhão preto alto, com pinta de indolente. O sujeito de casaco vermelho era a personificação da arrogância, seus olhos azuis e frios ignoravam os homens à volta. O cheiro do sujeito se sobressaía entre os outros, também frio e destacado, quase como se ele não tivesse nada em comum com aqueles homens, nem mesmo a humanidade.
Faile foi correndo até Perrin, escancarando um sorriso, as saias estreitas e divididas farfalhando, um barulho de seda cinza roçando seda. Tinha o perfume suave de um doce sabão herbóreo, misturado a seu próprio cheio.
— Mestre Luhhan disse que talvez encontrássemos você aqui.
Perrin queria perguntar o que a moça estava fazendo ali, mas viu-se abraçando Faile e dizendo, entre os cabelos dela:
— Que bom ver você. Eu estava com saudades.
Ela se afastou o suficiente para encará-lo.
— Você parece cansado.
Perrin ignorou o comentário. Não tinha tempo para se sentir cansado.
— Todos chegaram a salvo em Campo de Emond?
— Estão todos na estalagem Fonte de Vinho. — Faile de repente abriu um sorriso. — Mestre al’Vere encontrou uma antiga alabarda e disse que, se os Mantos-brancos quisessem pegá-los de volta, teriam de passar por cima dele. Está todo mundo na aldeia, Perrin. Verin, Alanna e os Guardiões. Estão fingindo ser outras pessoas, claro. E Loial. Ele causou uma comoção. Até mais do que Bain e Chiad. — O sorriso se transformou em uma carranca. — Loial me pediu para trazer um recado. Alanna desapareceu duas vezes sem dizer uma palavra, e estava sozinha em uma delas. Loial disse que Ihvon pareceu surpreso quando soube que a Aes Sedai não estava por lá. E que não era para eu deixar mais ninguém saber disso. — Ela analisou o rosto dele. — O que isso quer dizer, Perrin?
— Nada, talvez. Só que não posso ter certeza se dá para confiar nela. Verin me alertou sobre ela, mas será que posso confiar em Verin? Você disse que Bain e Chiad estão em Campo de Emond? Acho que isso significa que ele sabe a respeito delas. — Perrin inclinou a cabeça, indicando Luc. Alguns poucos homens haviam se aproximado dele, fazendo perguntas acanhadas, que o lorde respondia com um sorriso condescendente.
— Elas vieram com a gente — respondeu Faile, receosa. — Estão vigiando os arredores do acampamento. Acho que as duas não pensam muito bem dos seus sentinelas. Perrin, por que não quer que Luc saiba sobre os Aiel?
— Conversei com várias pessoas que tiveram as casas incendiadas. — Luc estava muito longe para ouvir, mas ele manteve a voz baixa. — Contando com a de Flann Lewin, Luc esteve em pelo menos cinco no dia do ataque, ou no dia anterior.
— Perrin, o sujeito é um imbecil arrogante em vários aspectos, ouvi dizer até que ele andou insinuando que teria direito a um dos tronos das Terras da Fronteira, e, pelo que ele contou, é de Murandy. Mas você não pode acreditar que o homem seja Amigo das Trevas. Ele deu excelentes conselhos em Campo de Emond. Quando eu disse que todo mundo estava lá, quis dizer todo mundo mesmo. — Ela balançou a cabeça, espantada. — Centenas e mais centenas de pessoas vieram do norte e do sul, de todos os cantos, trazendo o gado e as ovelhas, todos falando dos avisos de Perrin Olhos-Dourados. Sua aldeiazinha está se preparando para se defender, caso seja preciso. E Luc andou por todos os cantos nos últimos dias.
— Perrin quem? — Ele ofegou, fazendo careta. Tentou mudar de assunto, dizendo: — Do sul? Mas isso aqui é o mais distante que já estive, ao sul. Não conversei com nenhum fazendeiro mais de uma milha abaixo do Rio Fonte de Vinho.
Faile deu uma risada e um puxão na barba dele.
— As notícias voam, meu belo general. Acho que metade dessa gente está esperando que você organize um exército e persiga os Trollocs até a Grande Praga. Vão contar histórias sobre você em Dois Rios pelos próximos mil anos. Perrin Olhos-Dourados, o caçador de Trollocs.
— Luz! — murmurou ele.
Caçador de Trollocs. Até então, fizera pouco para justificar a alcunha. Dois dias depois de libertar a Senhora Luhhan e os outros, no dia em que Verin e Tomas seguiram seu próprio caminho, chegaram às ruínas de uma fazenda ainda enfumaçada, ele e os quinze rapazes de Dois Rios que o seguiam. Depois de enterrar o que encontraram em meio às cinzas, foi bem simples ir atrás dos Trollocs. Mais ainda com ajuda das habilidades de rastreamento de Gaul e o faro do próprio Perrin. O odor ocre e fétido dos Trollocs não tivera tempo de se dissipar, não para ele. Alguns dos rapazes começaram a ficar relutantes ao perceber que ele estava falando sério em relação a caçar Trollocs. Se aquelas criaturas estivessem muito longe, Perrin suspeitava que a maioria dos rapazes teria fugido quando ninguém estivesse olhando. Mas a trilha levava a um matagal a pouco menos de três milhas de onde estavam. Os Trollocs não tinham se dado o trabalho de designar sentinelas — não havia Myrddraal para intimidá-los a deixarem de preguiça — e os homens de Dois Rios sabiam como chegar perto da presa sem fazer barulho. Trinta e dois Trollocs morreram, muitos sob os cobertores imundos, perfurados por flechas antes de conseguirem dar sequer um uivo, muito menos erguer uma espada ou um machado. Dannil, Ban e os outros estavam prontos para celebrar o grande triunfo… Até descobrirem o que estava cozinhando no imenso caldeirão sobre os resquícios da fogueira. A maioria bateu em retirada para vomitar, e mais de um começou a chorar bem ali, na frente de todos. Perrin cavou a cova sozinho. Apenas uma: não havia como dizer o que pertencia a quem. Por mais calmo que se sentisse, não sabia ao certo se teria sido capaz de se manter tranquilo se os pedaços estivessem reconhecíveis.