Chiad inclinou-se para perto de Bain.
— Até que ele consegue correr bem, para um Cão de Pedra — sussurrou, alto o bastante para ser ouvida a vinte pés de distância. — Faz um pouco menos de barulho que um touro manco.
— E então, Wil? — perguntou Perrin. — Quer ir para Campo de Emond? Lá você vai poder fazer a barba, talvez até dar uns beijos em alguma garota. Tudo isso enquanto os Trollocs jantam, hoje à noite.
O rosto de Wil ficou de um tom vermelho-escuro.
— Hoje à noite, estarei onde você estiver, Aybara — respondeu, com a voz dura.
— Ninguém quer ir para casa enquanto ainda houver Trollocs por aí, Perrin — acrescentou Kenley.
Perrin olhou os outros à sua volta e viu apenas acenos de cabeça aprovativos.
— E você, Luc? Seria um prazer ter um lorde Caçador da Trombeta com a gente. Você pode nos mostrar como é que se faz.
Luc abriu um pequeno sorriso, um talho na rocha que não chegou aos frios olhos azuis.
— Infelizmente, as defesas de Campo de Emond ainda necessitam de mim. Preciso garantir a proteção de seu povo, caso os Trollocs apareçam por lá em um número maior do que trinta. Ou os Filhos da Luz. Milady Faile? — Ele estendeu a mão para ajudá-la a montar, mas a jovem balançou a cabeça.
— Vou ficar com Perrin, Lorde Luc.
— Que pena — murmurou o homem, dando de ombros como se para expressar que gosto de mulher não se discute. Calçando as manoplas adornadas com lobos com gestos bruscos, ele montou na sela do garanhão negro em um movimento suave. — Boa sorte para você, Mestre Olhos-Dourados. Espero que vocês tenham muita sorte. — Com uma meia mesura para Faile, ele deu um rodopio pomposo no cavalo alto e enfiou as esporas nos flancos do animal, impelindo-o a um galope que forçou alguns dos homens a saltarem para o lado para abrir caminho.
Faile franziu o cenho para Perrin, sugerindo que faria um sermão sobre grosseria, quando os dois estivessem sozinhos. O rapaz prestou atenção aos sons do cavalo de Luc até não conseguir mais ouvir, depois virou-se para Gaul.
— Será que a gente consegue ultrapassar os Trollocs? Podemos ficar esperando em algum ponto, antes que eles cheguem aonde pretendem parar?
— A distância é razoável, se partirmos agora — respondeu Gaul. — Eles estão avançando sem pressa, em linha reta. Tem um Mensageiro da Noite com eles. Vai ser mais fácil surpreendê-los debaixo das cobertas do que tentar encarar o bando acordado. — Ele queria dizer que seria mais fácil para os homens de Dois Rios. O Aiel não cheirava a medo.
Mas sem dúvida alguns dos outros estavam com cheiro de medo. Ainda assim, ninguém sugeriu que um confronto com Trollocs alerta e despertos, ainda por cima com um Myrddraal, pudesse não ser o melhor plano. O grupo levantou acampamento assim que ele emitiu a ordem, apagando as fogueiras e espalhando as cinzas, reunindo as poucas panelas e juntando o estranho grupo de cavalos e pôneis. Eram quase setenta, contando os sentinelas — Perrin fez uma anotação mental de que precisava ter aquela conversa com eles — sem dúvida um número grande o suficiente para armar uma emboscada para trinta Trollocs. Ban al’Seen e Dannil ainda lideravam metade cada um — parecia a melhor forma de evitar discussões — e Bili al’Dai, Kenley e outros iam à frente de uns dez. Wil também. Ele não era um mau rapaz, quando conseguia tirar a cabeça das garotas.
Faile conduziu Andorinha para perto de Galope assim que o grupo arrancou em direção ao sul, com os Aiel na dianteira.
— Você não confia mesmo nele — comentou — Acha que é Amigo das Trevas.
— Confio em você, no meu arco e no meu machado — respondeu Perrin. A jovem assumiu uma expressão ao mesmo tempo triste e satisfeita, mas aquilo era a pura verdade.
Durante duas horas, Gaul conduziu o grupo para o sul, antes de entrar na Floresta das Águas, um emaranhado de imensos carvalhos, pinheiros e folhas-de-couro, com baios frondosos e oleastros-vermelhos em forma de cone, freixos altivos de copas redondas, groselheiras e salgueiros-negros, nos troncos de trepadeiras. Mil esquilos chilreavam nos galhos, e sabiás, tentilhões e tordos-ruivos voavam por todos os lados. Perrin sentia cheiro de cervos e coelhos, além de raposas. Uma profusão de diminutos córregos cruzava a floresta, com poças e laguinhos com bordas de junco pontilhando o lugar, em geral encobertos, mas às vezes expostos. Alguns mediam menos de dez passadas, outros chegavam a quase cinquenta. O solo estava encharcado depois de tanta chuva, e os cascos dos cavalos chapinhavam na lama.
Gaul parou entre uma grande poça rodeada de carvalhos e um riacho estreito de um passo de largura, cerca de duas milhas para dentro da mata. Os Trollocs passariam por ali se continuassem seguindo pelo mesmo caminho. Os três Aiel desapareceram por entre as árvores para se certificar e trazer avisos da aproximação dos inimigos.
Deixando Faile e uns dez homens para vigiar os cavalos, Perrin posicionou os outros em um meio-círculo estreito, uma armadilha para onde os Trollocs decerto marchariam. Depois de garantir que todos os homens estavam bem escondidos e sabiam o que ele pretendia fazer, Perrin se posicionou no ponto central do lugar, ao lado de um carvalho com um tronco que tinha mais de largura do que ele de altura.
Ele afrouxou o passante do cinto que prendia o machado, encaixou uma flecha no arco e esperou. Uma brisa leve soprou em seu rosto, aumentou, depois diminuiu. Ele decerto conseguiria farejar os Trollocs muito antes de surgirem à vista. As criaturas deviam estar seguindo direto por aquele caminho. Perrin tocou o machado outra vez e esperou. Minutos se passaram. Uma hora. Mais. Quanto tempo até que as Criaturas da Sombra aparecessem? Se passassem muito mais tempo naquela umidade, as cordas dos arcos teriam de ser trocadas.
Os pássaros desapareceram por um instante, antes de os esquilos se calarem. Perrin respirou fundo e franziu o cenho. Nada. Com aquela brisa, sem dúvida conseguiria farejar os Trollocs assim que os animais os notassem.
Uma lufada de vento errante trouxe o odor pútrido, feito centenas de anos de suor e decomposição. Dardo meia-volta, Perrin gritou:
— Eles estão atrás de nós! Corram até mim! Dois Rios, venham a mim! — Estavam atrás dos cavalos. — Faile!
Gritos e guinchos irromperam de todos os lados, uivos e urros selvagens. Um Trolloc com chifres de carneiro saltou à vista a vinte passadas de distância, erguendo um arco comprido e curvo. Perrin levou o arco à orelha e disparou a flecha em um movimento suave, apanhando outra assim que soltou a primeira. A lança de ponta parruda acertou o Trolloc bem entre os olhos, e a criatura soltou um berro ao desabar. A flecha que ele soltara, do tamanho de uma lança pequena, atingiu a lateral de Perrin como um golpe de martelo.
O rapaz se curvou, ofegante com o choque, e largou o arco e a nova flecha. A dor se expandia a partir da ponteira da flecha de penas negras, que tremulava quando ele respirava, e cada movimento enviava novas ondas de dor.
Mais dois Trollocs saltaram por cima do companheiro morto, focinhos de lobo e chifres de bode, silhuetas envoltas em malha negra com o dobro da altura e largura de Perrin. Os dois partiram para cima do rapaz, urrando, as espadas curvas em riste.
Perrin obrigou-se a ficar de pé, rangeu os dentes, quebrou a parte da flecha grossa que estava para fora, soltou o machado e arrancou na direção dos dois. Percebeu vagamente que uivava. Uivava, cheio de uma fúria que deixava seus olhos vermelhos. As criaturas se avultaram por cima dele, as armaduras cravadas de pregos nos ombros e cotovelos, mas Perrin rodopiou o machado em frenesi, como se a cada golpe tentasse derrubar uma árvore. Por Adora. Por Deselle.
— Pela minha mãe! — gritou. — Que o queime! Pela minha mãe!
De súbito, percebeu que golpeava massas ensanguentadas no chão. Rosnando, obrigou-se a parar, tremendo tanto pelo esforço quanto pela dor na lateral do corpo. Agora havia menos gritos. Menos uivos. Será que sobrara alguém além dele?