— Venham a mim! Dois Rios, venham a mim!
— Dois Rios! — gritou alguém, em um urro frenético, saindo da mata úmida, e depois mais alguém:
— Dois Rios!
Dois. Apenas dois.
— Faile! — gritou ele. — Ah, Luz, Faile!
O lampejo de um movimento fluido por entre as árvores anunciou a vinda de um Myrddraal antes que ele pudesse ver a criatura com clareza, a armadura negra envolvendo o corpo feito uma serpente, o manto escuro sem se alterar com os movimentos. Ao se aproximar, o Meio-homem reduziu o passo a um caminhar sinuoso e confiante. A criatura sabia que Perrin estava ferido, sabia que era presa fácil. O olhar sem olhos na face branca o açoitava com golpes de medo.
— Faile? — repetiu a criatura, em um tom debochado. A voz fez o nome soar como carne queimada e desintegrada. — Sua Faile… estava uma delícia.
Rugindo, Perrin partiu para cima do Meio-homem. Uma espada de lâmina negra aparou o primeiro golpe. E o segundo. E o terceiro. O rosto da criatura, branco feito um verme, estava firme e concentrado, mas o Myrddraal se movia feito uma víbora, feito um raio. Por ora, Perrin mantinha o Meio-homem na defensiva. Por ora. O sangue pingava da lateral do corpo, que ardia como fogo das forjas. Perrin não conseguiria aguentar. E, quando sua força falhasse, aquela espada seria cravada em seu coração.
Seu pé resvalou na lama sob as botas, e o Desvanecido ergueu a lâmina. Então uma espada indistinta quase degolou aquela cabeça sem olhos, que desabou por cima de um dos ombros em uma fonte de sangue negro. Desferindo golpes cegos, o Myrddraal cambaleou para a frente, trôpego, recusando-se a morrer, o corpo instintivamente tentando matar.
Perrin saiu do caminho da criatura com dificuldade, mas sua atenção estava toda no homem que limpava a espada com frieza, usando um punhado de folhas. Era Ihvon, o manto furta-cor pendendo sobre os ombros.
— Alanna me mandou atrás de vocês. Quase não consegui, com tantos deslocamentos, mas setenta cavalos deixam bons rastros. — O Guardião magro e escuro mantinha a mesma compostura que teria se estivesse acendendo o cachimbo diante de uma lareira. — Os Trollocs não estavam ligados a esse… — Ele apontou com a espada para o Myrddraal; a criatura estava caída no chão, mas ainda golpeava a esmo. — É uma pena, mas, se você conseguir reunir seu povo, os Trollocs talvez não tenham disposição para tentar atacar todos sem o Sem-rosto para instigá-los. Eu diria que são uns cem, para começar. Um pouco menos, agora. Você retalhou esses aí.
Ihvon começou a inspecionar as sombras sob as árvores, muito calmo, apenas a espada em sua mão indicava que havia algo fora do comum.
Por um breve instante, Perrin ficou de queixo caído. Alanna queria falar com ele? Mandara Ihvon. Bem a tempo de salvar sua vida. Trêmulo, ele elevou a voz outra vez.
— Dois Rios, venham a mim! Pelo amor da Luz, venham a mim! Aqui! Venham! Aqui!
Dessa vez, continuou a berrar até surgirem rostos familiares, cambaleando por entre as árvores. Mais rostos sujos de sangue do que limpos. Rostos em choque, com os olhos arregalados. Alguns homens chegavam apoiados em outros, e uns tinham perdido os arcos. Os Aiel estavam entre eles. Pareciam ilesos, exceto por Gaul, que mancava de leve.
— Eles não vieram como o esperado — foi tudo o que disse o Aiel. A noite foi mais fria do que o esperado. Choveu mais do que o esperado. Foi nesse tom.
Faile pareceu se materializar junto com os cavalos. Com metade dos cavalos, incluindo Galope e Andorinha, e nove dos onze homens que Perrin deixara com ela. Tinha um arranhão em uma das bochechas, mas estava viva. Perrin tentou abraçá-la, mas ela afastou seus braços, resmungando irritada sobre a flecha quebrada mesmo enquanto afastava o casaco de Perrin com cuidado, tentando examinar onde a lança robusta acertara.
Perrin observou os homens à sua volta. Ninguém mais chegou, mas ainda havia rostos ausentes. Kenley Ahan. Bili al’Dai. Teven Marwin. Forçou-se a nomear os ausentes, obrigou-se a contá-los. Vinte e sete. Vinte e sete não estavam lá.
— Trouxeram todos os feridos? — perguntou, a voz embotada. — Tem mais alguém por aí?
A mão de Faile tremeu ao lado dele. A jovem encarava a ferida com uma careta que era um misto de preocupação e fúria. Tinha o direito de estar irritada. Ele nunca deveria tê-la metido naquilo.
— Só os mortos — respondeu Ban al’Seen, com uma voz tão pesada quanto a expressão em seu rosto.
Wil parecia franzir o cenho para algo um pouco mais adiante.
— Eu vi Kenley — disse. — A cabeça dele estava enfiada no galho de um carvalho, mas o resto do corpo estava caído no chão. Eu vi. Ele não vai mais sofrer com o resfriado. — O rapaz fungou, parecendo assustado.
Perrin soltou um longo suspiro, mas logo desejou não ter suspirado. A dor que subiu pela lateral o fez cerrar os dentes. Faile, com um lenço de seda verde e dourado enrolado na mão, tentava puxar sua camisa para fora da calça. Ele afastou as mãos dela, apesar da cara feia que recebeu em resposta. Não havia tempo para cuidar de machucados.
— Coloquem os feridos nos cavalos — mandou, quando conseguiu falar. — Ihvon, eles vão nos atacar? — A floresta parecia quieta demais. — Ihvon?
O Guardião surgiu, conduzindo um capão cinza-escuro de olhar feroz. Perrin repetiu a pergunta.
— Talvez sim. Talvez não. Quando estão sem líder, os Trollocs matam quem for mais fácil. Sem um Meio-homem no comando, provavelmente vão preferir encontrar uma fazenda do que alguém que possa cravar flechas neles. Deixe um arco com uma flecha encaixada nas mãos de cada um que conseguir se manter de pé, mesmo os que não souberem usar. Eles podem considerar o preço da diversão muito alto.
Perrin sentiu um calafrio. Se os Trollocs de fato atacassem, se divertiriam tanto quanto ele em uma dança no Dia do Sol. Ihvon e os Aiel eram os únicos realmente prontos para lutar. E Faile, com os olhos negros cintilando de fúria. Ele tinha de levá-la para um lugar seguro.
O Guardião não ofereceu o próprio cavalo para os feridos, o que fazia sentido. Era provável que o animal não deixasse mais ninguém montar em seu lombo, e, além disso, um cavalo treinado para a batalha com o próprio mestre na sela seria uma arma excelente, caso os Trollocs viessem outra vez. Perrin tentou montar Faile em Andorinha, mas ela o impediu.
— Você falou que os feridos iam a cavalo — sussurrou ela. — Lembra?
Para seu desgosto, a moça insistiu para que ele conduzisse Galope. Perrin esperou que os outros protestassem, depois de terem sido levados ao desastre, mas ninguém o fez. Havia cavalos suficientes, tanto para os incapazes de andar quanto para os incapazes de andar muito. Perrin admitiu, de má vontade, que estava no segundo grupo, então acabou montado. Metade dos outros cavaleiros teve de fazer o mesmo. Ele se sentou, rangendo os dentes para manter-se ereto.
Os que caminhavam ou cambaleavam, além de alguns que cavalgavam, permaneciam agarrados aos arcos como se eles fossem a salvação. Perrin levava um, e Faile também, mas o rapaz duvidava que ela soubesse sequer empunhar um arco longo de Dois Rios. Era a aparência que contava. A ilusão poderia garantir a segurança do grupo. Assim como Ihvon, alerta como um chicote enrolado, os três Aiel deslizavam à frente com elegância, aparentemente impassíveis, com as lanças nas costas, enfiadas nos arreios dos estojos dos arcos de chifre, que iam em mãos e a postos. Os outros, o próprio Perrin incluso, eram um bando de esfarrapados, nada que lembrasse o grupo que ele conduzira até ali, tão confiantes e cheios de orgulho. Ainda assim a ilusão teve o mesmo efeito da realidade. Na primeira milha que avançaram por entre a mata trançada, a brisa trouxe o fedor dos Trollocs, o odor de Trollocs seguindo-os, à espreita. Então o cheiro foi se esvaindo aos poucos e desapareceu enquanto os Trollocs se afastavam, iludidos por uma miragem.