— Você acha que os Trollocs vão embora porque você decidiu que não tem motivos genuínos o bastante? — A fúria na voz dela o fez erguer a cabeça, mas Faile empurrou-a de volta no travesseiro quase com brutalidade. — Eles vão ficar menos vis? Você precisa de uma razão mais genuína para lutar do que o que eles representam? Outra coisa que meu pai diz. O maior pecado que um general pode cometer, pior que asneiras, pior que perder, pior que qualquer coisa, é abandonar os homens que dependem dele.
Ouviu-se uma batida na porta, e um jovem latoeiro belo e esguio, vestido em um casaco de listras azuis e vermelhas, pôs a cabeça para dentro. Abriu um sorriso para Faile, cheio de charme e dentes brancos, antes de olhar para Perrin.
— O meu avô disse que era você. Achei que era aqui onde Egwene disse que tinha nascido. — Ele fechou a cara de repente, em desaprovação. — Seus olhos. Estou vendo que foi mesmo atrás de Elyas, para correr com os lobos. Sempre soube que você nunca encontraria o Caminho da Folha.
Perrin o conhecia: era Aram, neto de Raen e Ila. Não gostava dele. O rapaz tinha o mesmo sorriso de Wil.
— Vá embora, Aram. Estou cansado.
— Egwene veio com você?
— Egwene agora é Aes Sedai, Aram — grunhiu — e arrancaria seu coração fora com o Poder Único, se você a tirasse para uma dança. Vá embora!
Aram piscou e bateu a porta depressa. Ficou do lado de fora.
Perrin deixou a cabeça desabar.
— Ele sorri demais — resmungou. — Não consigo tolerar um homem que sorri tanto.
Faile emitiu um som abafado, e ele a encarou, desconfiado. Ela estava mordendo o lábio inferior.
— Estou com alguma coisa na garganta — comentou ela, em uma voz abafada, levantando-se depressa. Correu até a grande prateleira sob o pé da cama, onde Ila preparara o cataplasma, e pôs-se de costas para ele, servindo água de uma jarra verde e vermelha em uma caneca azul e amarela. — Quer alguma coisa para beber? Ila deixou esse pó para a dor. Vai ajudar a dormir.
— Não quero pó nenhum — respondeu ele. — Faile, quem é o seu pai?
Ela enrijeceu as costas. Depois de um momento, virou-se de novo, segurando a caneca nas duas mãos, uma expressão indecifrável nos olhos oblíquos. Outro minuto se passou, então a jovem respondeu:
— Meu pai é Davram, da Casa Bashere, Lorde de Bashere, Tyr e Sidona, Guardião da Fronteira da Praga, Defensor da Terra do Coração, Marechal-General da Rainha Tenobia, de Saldaea. E tio dela.
— Luz! E aquela história toda de ele ser comerciante de madeira, ou mercador de peles? Acho que me lembro de você também dizer que ele trabalhava com pimenta-de-gelo.
— Não era mentira — respondeu ela, ríspida. Depois, em um tom mais brando: — Só não era… toda a verdade. As propriedades do meu pai realmente produzem serragem de madeira e madeira fina, pimenta-de-gelo, pele e muito mais. E os administradores realizam as vendas, então ele é mesmo comerciante. De certo modo.
— Por que foi que você não me contou? Ficou escondendo as coisas. Mentindo. Você é uma lady! — Perrin disparou um olhar acusatório. Não estava esperando por isso. Que o pai dela fosse um pequeno mercador, um ex-soldado, talvez, mas não isso. — Luz, o que você está fazendo, correndo por aí fingindo ser Caçadora da Trombeta? Não me diga que o Lorde de Bashere e tudo o mais mandou você embora para procurar uma aventura.
Ainda segurando a caneca, Faile voltou e se sentou ao lado dele. Por alguma razão, parecia muito concentrada em seu rosto.
— Perrin, os meus dois irmãos mais velhos morreram. Um, lutando contra Trollocs, o outro, em uma queda do cavalo de caça. Com isso, virei a mais velha, e acabei tendo que estudar negócios e livros de contabilidade. Meus irmãos mais novos estavam virando soldados, se preparando para aventuras, e eu tinha que aprender a administrar as propriedades! Essa é a obrigação do mais velho. Obrigação! É enfadonho, frio, chato. Ficar afundada em papelada de escritório. — Ela continuou: — Quando meu pai levou Maedin, que é dois anos mais novo que eu, com ele para a Fronteira da Praga, para mim foi a gota d’água. As garotas de Saldaea não aprendem a lutar com espadas ou a enfrentar a guerra, mas meu pai nomeou um antigo soldado de seu primeiro comando como meu criado de libré, e Eran sempre teve prazer em me ensinar a usar facas e lutar com as mãos. Acho que isso o divertia. De todo modo, quando meu pai levou Maedin com ele, chegaram notícias convocando para a Grande Caçada à Trombeta, então eu… fui embora. Escrevi uma carta para minha mãe, explicando meus motivos, e… fui. E cheguei em Illian a tempo de fazer o juramento de Caçador… — Ela apanhou o pedaço de pano e limpou outra vez o suor do rosto dele. — Você devia mesmo dormir, se conseguir.
— Imagino que você seja a Lady Bashere, ou algo do tipo? — indagou ele. — Como foi que passou a gostar de um simples ferreiro?
— A palavra é “amar”, Perrin Aybara. — A firmeza de sua voz contrastava com a gentileza do pano deslizando no rosto dele. — E acho que você não é um ferreiro tão comum assim. — O pedaço de pano parou. — Perrin, o que aquele sujeito quis dizer com “correndo com os lobos”? Raen também mencionou esse tal de Elyas.
Por um instante, Perrin ficou paralisado, sem respirar. No entanto, acabara de censurá-la por guardar segredos dele. Era isso o que ganhava por ser precipitado e nervoso. Girar um martelo na pressa fazia o sujeito acertar o próprio polegar. Deu um suspiro profundo e contou a ela. Como conhecera Elyas Machera e descobrira ser capaz de falar com os lobos. Como seus olhos mudaram de cor, ficaram mais aguçados, e como o mesmo acontecera com a audição e o olfato, ficando como os de um lobo. E contou sobre os sonhos de lobo. Sobre o que aconteceria se ele perdesse o contato com seu lado humano.
— É tão fácil. Às vezes, ainda mais no sonho, esqueço que sou um homem, e não um lobo. Se em um desses momentos eu não me lembrar depressa, se eu perder o contato, vou mesmo virar lobo. Pelo menos na minha cabeça. Uma espécie de lobo distorcido. Não vai sobrar mais nada de mim. — Ele parou, esperando que Faile se encolhesse, que se afastasse.
— Se seus ouvidos são mesmo tão aguçados — respondeu ela, tranquila — é melhor eu prestar atenção nas coisas que falo perto de você.
Perrin segurou a mão dela, para que a jovem parasse de lhe dar tapinhas com o pano.
— Você ouviu alguma coisa que eu disse? O que é que o seu pai e a sua mãe vão pensar, Faile? Um ferreiro que é metade lobo. Você é uma lady! Luz!
— Eu ouvi cada palavra. Meu pai vai aprovar. Ele sempre disse que o sangue da nossa família está ficando fraco, que não é mais como antigamente. Sei que ele me acha incrivelmente mole. — Faile abriu um sorriso feroz até para um lobo. — E, é claro, minha mãe sempre quis que eu me casasse com um rei capaz de partir Trollocs em dois com um só golpe de espada. Acho que seu machado basta, mas será que você pode dizer a ela que é o rei dos lobos? Acho que não vai aparecer ninguém para disputar o trono. Na verdade, acho que partir Trollocs em dois já está de bom tamanho para minha mãe, mas acredito que ela vá preferir a coisa do rei.
— Luz! — exclamou Perrin, com a voz rouca. Faile soava quase séria. Não, soava séria. Se estivesse falando pelo menos meio sério, talvez os Trollocs fossem uma opção melhor do que conhecer os pais dela.
— Aqui — disse a jovem, levando a caneca de água até os lábios dele. — Você parece estar com a garganta seca.
Perrin engoliu e acabou se engasgando com o gosto amargo. Faile misturara o pó de Ila! Tentou parar, mas a namorada encheu sua boca com o líquido, e era uma questão de engolir ou engasgar. Quando conseguiu empurrar a caneca, Faile já esvaziara a metade por sua goela abaixo. Por que os remédios sempre tinham um gosto tão horrendo? Suspeitava que as mulheres fizessem isso de propósito. Apostava que os que elas tomavam não eram tão ruins assim.