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— Eu falei que não queria isso. Argh!

— Ah, foi? Acho que não ouvi. Mas, querendo ou não a bebida, você tem que dormir. — Ela afagou seus cabelos cacheados. — Durma, meu Perrin.

O rapaz tentou dizer a ela que tinha falado, sim, e que ela o ouvira, mas as palavras pareceram se enroscar na boca. Quis fechar os olhos. Na verdade, não conseguia mais mantê-los abertos. A última coisa que ouviu foram os murmúrios delicados de Faile:

— Durma, meu rei dos lobos. Durma.

42

Uma folha a menos

Perrin estava parado perto dos carroções dos Tuatha’an, sob o sol forte, sozinho, sem flecha nem dor no corpo. No meio dos carroções havia lenha empilhada já pronta para ser acesa sob panelas de ferro penduradas em tripés, e roupas estavam penduradas nos varais. Não se via gente nem cavalos. Perrin não usava casaco ou blusa, e sim um comprido colete de ferreiro que deixava os braços à mostra. Aquele poderia ser qualquer sonho, talvez, exceto pela consciência de que era um sonho. E Perrin conhecia a sensação do sonho de lobo, a realidade e a concretude da grama alta ao redor de suas botas, da brisa que soprava do oeste e bagunçava seus cabelos cacheados, dos carvalhos e pinheiros espalhados pelo campo aberto. No entanto, os carroções berrantes dos latoeiros não pareciam reais, tinham um ar de insubstancialidade, passavam a sensação de que iriam piscar e desaparecer a qualquer momento. Os latoeiros nunca permaneciam muito tempo em um lugar. Nenhum solo os segurava.

Perguntando-se quanta influência a terra exercia sobre ele, Perrin pousou a mão no machado — e olhou para baixo, surpreso. O que pendia no passante do cinto era o pesado martelo de ferreiro, não o machado. Ele franziu a testa. Um dia teria escolhido esse caminho, até pensara que tinha, mas sem dúvida não era mais o caso. O machado. Escolhera o machado. A cabeça do martelo de súbito transformou-se em uma lâmina em meia-lua e uma ponteira grossa, então tremulou e reassumiu a forma do cilindro robusto de aço frio, depois flutuou entre as duas. Por fim, repousou como machado, e ele expirou lentamente. Isso nunca acontecera antes. Ali, conseguia alterar as coisas com facilidade, pelo menos as que tinham relação com ele mesmo.

— E eu quero o machado — disse com firmeza. — O machado.

Ao olhar em volta, Perrin viu apenas uma casa de fazenda ao sul, com cervos pastando no campo de cevada, rodeado por um muro de pedra bruta. Não sentia a presença de lobos, e não chamou Saltador. O lobo poderia vir ou não, poderia nem ouvir, mas havia grandes chances de o Matador estar em algum canto por ali. Sentiu de repente o peso de uma aljava rústica, com o couro ainda coberto do pelo do animal, em seu cinturão do lado oposto ao machado, e em sua mão surgiu um arco longo robusto, com uma flecha de ponta chata já encaixada. Uma braçadeira comprida de couro cobria seu antebraço esquerdo. Nada se movia além dos cervos.

— Pouco provável que eu acorde logo — resmungou para si mesmo. Fosse o que fosse a tal coisa que Faile dera a ele, o nocauteara de vez. Perrin lembrava-se do que acontecera tão bem que era como se estivesse na sua frente. — Me empurrou aquele troço pela goela como se eu fosse um bebê — grunhiu. — Mulheres!

Deu uma de suas longas passadas — a paisagem ao redor ficou turva — e adentrou o pátio da fazenda. Havia duas ou três galinhas à solta, correndo como se fossem selvagens. O curral de ovelhas, com paredes de pedra, permanecia vazio, e os dois celeiros com telhado de palha estavam fechados com barras. Apesar das cortinas ainda nas janelas, a casa de dois andares parecia vazia. Se aquilo era um reflexo real do mundo desperto — e os sonhos de lobo, estranhamente, costumavam ser — então já não havia gente ali há dias. Faile tinha razão. Sua advertência se espalhara para além dos lugares onde ele tinha ido.

— Faile — murmurou, assombrado. Filha de um lorde. Não, não só um lorde. Três vezes lorde, general e tio de uma rainha. — Luz, e ela ainda é prima de uma rainha! — E amava um simples ferreiro. As mulheres eram estranhas e surpreendentes.

Procurando ver até onde as notícias tinham chegado, Perrin ziguezagueou por mais da metade do caminho até Trilha de Deven, uma milha ou mais a cada passada, retornando e entrecortando o caminho de ida. A maioria das fazendas que via mostravam o mesmo vazio. Em menos de uma a cada cinco havia sinais de algum habitante, como janelas e portas abertas, bonecas, argolas e cavalos esculpidos em madeira caídos na soleira de uma porta. Os brinquedos, em especial, faziam seu estômago revirar. Ainda que não tivessem acreditado no aviso dele, sem dúvida poderiam ter acreditado nas muitas fazendas incendiadas, pilhas de vigas de madeira desabadas, chaminés pretas de fuligem, mais parecendo dedos mortos e rígidos.

Ele se inclinou para ajeitar uma boneca de rosto vítreo e sorridente e um vestido com bordado de flores — alguma mulher amava muito a própria filha, para ter todo aquele trabalho de costura — e piscou. A mesma boneca permanecia nos degraus de pedra bruta de onde acabara de apanhá-la. Quando estendeu o braço, a que estava em sua mão sumiu.

Lampejos negros no céu o distraíram de seu espanto. Corvos, um grupo de vinte ou trinta, voavam em direção à Floresta do Oeste. Em direção às Montanhas da Névoa, onde tinha visto o Matador pela primeira vez. Perrin observou com frieza enquanto os corvos se esvaneciam até virar pontinhos negros e desaparecer. Então partiu atrás deles.

A cada passada ligeira e comprida, avançava cinco milhas, a paisagem ao redor toda borrada, exceto nos momentos entre um passo e outro. Seguia pela Floresta do Oeste, rochosa e repleta de árvores, cruzando as Colinas de Areia, cheias de arbustos, adentrando as montanhas enevoadas onde abetos, pinheiros e folhas-de-couro revestiam os vales e as encostas. Avançou até chegar ao mesmo vale onde vira pela primeira vez o homem que Saltador chamava de Matador, até a encosta da montanha por onde retornara a Tear.

O Portal dos Caminhos permanecia ali, fechado, a folha de Avendesora aparentemente apenas uma entre uma miríade de folhas e trepadeiras entalhadas com detalhes intrincados. Árvores isoladas, encarquilhadas e marcadas pelo vento pontilhavam o solo esparso na pedra polida onde Manetheren fora incendiada. A luz do sol cintilava sobre as águas do Manetherendrelle, mais abaixo. Um vento fraco vindo do vale trazia cheiro de cervos, coelhos e raposas. Nada se movia, que ele pudesse ver.

Já a ponto de ir embora, parou. A folha de Avendesora. Uma folha. Loial trancara o Portal dos Caminhos colocando as duas folhas daquele lado. Ele se virou, e os pelos de sua nuca se eriçaram. Viu o Portal dos Caminhos aberto, duas massas iguais de folhagem viva revolvendo com a brisa, expondo aquela superfície prateada e opaca. Seu reflexo brilhava sobre ela. Como assim?, perguntou-se. Loial trancou essa porcaria.

Sem se dar conta de que cruzara a distância até a entrada, viu-se de súbito bem diante do Portal dos Caminhos. A folha de três pontas não estava no meio do emaranhado verdejante do lado de dentro dos dois portões. Era estranho pensar que, naquele mesmo instante, no mundo desperto, alguém — ou algo — estava passando bem onde ele se encontrava. Perrin tocou a superfície opaca e grunhiu. Poderia muito bem ser um espelho. Sua mão deslizou na superfície como deslizaria por sobre o vidro mais delicado.

De canto de olho, notou que de repente a folha de Avendesora voltara ao lugar, do lado de dentro, e deu um salto para trás no exato instante em que o Portal dos Caminhos começou a se fechar. Alguém — ou algo — saíra… ou entrara. Saiu. Só pode ter saído. Queria duvidar que fossem mais Trollocs e Desvanecidos a caminho de Dois Rios. Os portões se fundiram, transformando-se outra vez em pedra entalhada.