— Então chegarão mais Trollocs — comentou Ihvon, pensativo. Não perguntou como Perrin sabia. Depois balançou a cabeça, como se dispensasse a informação. — Avisarei aos outros que você acordou. — Saiu depressa, fechando a porta atrás de si.
— Será que eu sou o único que vê o perigo? — resmungou Perrin.
— Eu vejo uma flecha cravada em você — retrucou Faile, com firmeza.
O lembrete trouxe uma pontada de dor. Perrin sufocou um ganido e ela meneou a cabeça, satisfeita. Satisfeita!
Queria se levantar e partir naquele instante. Quanto mais cedo fosse Curado, mais cedo poderia ir fechar o Portal dos Caminhos, e dessa vez seria definitivamente. Faile insistiu em lhe dar o café da manhã na boca, um caldo espesso com purê de vegetais, próprio para um bebezinho banguela. Uma colherada de cada vez, com pausas para limpar o queixo. E não permitiu que ele comesse sozinho. Quando ele protestava ou pedia que ela acelerasse o ritmo, Faile o fazia engolir de volta as palavras com mais uma colherada de papa. Não permitiu sequer que ele lavasse o próprio rosto. Quando começou a escovar seus cabelos e pentear a barba, Perrin já havia caído em um silêncio digno.
— Você fica lindo de mau humor — comentou ela. E beliscou seu nariz!
Ila, que naquela manhã usava blusa verde e saia azul, subiu no carroção trazendo o casaco e a camisa dele, ambos limpos e cerzidos. Para sua irritação, precisou da ajuda das duas mulheres para se vestir. Precisou de ajuda para se sentar para se vestir, o casaco desabotoado e a camisa para fora da calça, emboladinha em volta do toco da flecha.
— Obrigado, Ila — disse, passando os dedos pelos remendos caprichados. — A costura está excelente.
— Está mesmo — concordou a mulher. — Faile é muito habilidosa com a agulha.
A jovem enrubesceu, e Perrin abriu um sorriso, pensando em como ela fora firme em dizer que nunca remendaria as roupas dele. Um lampejo nos olhos da garota o fez segurar a língua. Às vezes, o silêncio era a atitude mais sábia.
— Obrigado, Faile — disse, em vez de zombar, em um tom sério.
A jovem enrubesceu ainda mais.
Depois que as mulheres o puseram de pé, Perrin conseguiu chegar à porta sem maiores dificuldades, mas precisou se apoiar nas duas para descer os degraus de madeira. Pelo menos os cavalos estavam selados, e todos os rapazes de Dois Rios, reunidos, os arcos pendurados nas costas. De caras e roupas limpas, com apenas alguns curativos à mostra.
Uma noite com os Tuatha’an fora claramente suficiente para melhorar os ânimos do grupo, mesmo dos que ainda pareciam não conseguir caminhar nem cem passos. Os olhos mostravam apenas um resquício do esgotamento que era evidente na noite anterior. Wil tinha uma bela garota latoeira de olhos grandes em cada braço, é claro, e Ban al’Seen, com aquele nariz e uma atadura na cabeça que fazia o cabelo escuro ficar eriçado como um arbusto, estava de mãos dadas com uma terceira, de sorriso tímido. A maioria dos outros rapazes segurava tigelas com um cozido espesso de vegetais, que eles comiam com gosto.
— Isso é bom, Perrin — comentou Dannil, entregando a tigela vazia para uma mulher latoeira. Ela gesticulou, querendo saber se o varapau comeria mais, e ele balançou a cabeça, mas disse: — Acho que nunca me cansaria de comer isso, e você?
— Já estou satisfeito — respondeu Perrin, em um tom amargo. Purê de vegetais e caldo.
— As garotas latoeiras dançaram, ontem à noite — comentou Tell, irmão de Dannil, os olhos arregalados. — Todas as solteiras, e algumas das casadas! Você devia ter visto, Perrin.
— Já vi latoeiras dançando antes, Tell.
Aparentemente, não conseguira disfarçar o que sentira vendo as moças, pois Faile retrucou, em um tom seco:
— Você já viu a tiganza, foi? Um dia, se for bonzinho, eu danço a sa’sara para você. Aí vai ver o que é uma dança de verdade. — Ila soltou um arquejo ao reconhecer o nome, e Faile ficou ainda mais corada do que ficara no quarto.
Perrin apertou os lábios. Se essa sa’sara fizesse o coração bater mais forte do que o gingado lânguido dos quadris das latoeiras… tiganza, era isso? Definitivamente iria querer assistir a uma dança de Faile. Teve a prudência de não olhar para a jovem.
Raen chegou, vestindo o mesmo casaco verde-claro, porém com calças mais vermelhas do que qualquer uma que Perrin já tivesse visto. A combinação dava dor de cabeça.
— Por duas vezes você visitou nossas fogueiras, Perrin, e, pela segunda vez, vai embora sem uma festa de despedida. Precisa voltar logo, para podemos corrigir esse erro.
Afastando-se de Faile e Ila — conseguia ao menos ficar de pé sozinho — Perrin pousou a mão no ombro do homem forte.
— Venham com a gente, Raen. Ninguém em Campo de Emond fará mal a vocês. Pelo menos é mais seguro do que aqui fora, com os Trollocs.
Raen hesitou, depois sacudiu o corpo, murmurando:
— Não sei como você consegue a proeza de me fazer sequer considerar esse tipo de coisa. — Ele se virou e disse, em voz alta: — Povo, Perrin nos chamou para ir com ele até sua aldeia, onde estaremos a salvo dos Trollocs. Quem deseja ir? — Rostos em choque o encararam de volta. Algumas mulheres puxaram as crianças para perto, que se esconderam debaixo das saias das mães, como se a mera ideia já as assustasse. — Entende, Perrin? — perguntou Raen. — Para nós, a segurança está no deslocamento, não nas aldeias. Garanto a você que não passamos duas noites no mesmo lugar, e viajamos o dia inteiro até parar de novo.
— Talvez isso não seja o bastante, Raen.
O Mahdi deu de ombros.
— Sua preocupação me comove, mas nós vamos ficar a salvo, se for o que a Luz desejar.
— O Caminho da Folha não existe apenas para que não haja violência — interveio Ila, com gentileza — mas para que aceitemos o que vem. A folha cai na hora certa, sem reclamar. A Luz vai nos proteger enquanto não for a nossa hora.
Perrin quis discutir, mas debaixo de toda a ternura e compaixão em seus rostos havia uma firmeza rígida. Achava que conseguiria forçar Bain e Chiad a usar vestidos e abandonar as lanças — ou até mesmo Gaul! — antes de fazer aquela gente ceder um tantinho que fosse.
Raen apertou a mão de Perrin, e, com isso, as mulheres começaram a dar abraços de despedida nos rapazes de Dois Rios e até em Ihvon, e os homens trocaram apertos de mãos, todos rindo e desejando boa viagem, esperando que retornassem. Quase todos. Aram permaneceu afastado em um canto, a testa franzida e as mãos enfiadas nos bolsos do casaco. Na última vez em que o encontrara, Perrin achou que o homem parecia meio azedo, o que era estranho para um latoeiro.
Os homens não se contentaram em apertar a mão de Faile, também a abraçaram. Perrin conseguiu manter a expressão serena quando alguns dos rapazes mais jovens exageraram no entusiasmo, apenas cerrando um pouco os dentes. Conseguiu sorrir. Nenhuma mulher mais jovem que Ila o abraçou. Mesmo quando Faile permitia que algum magrela de casaco pomposo a abraçasse e tentasse dar uns apertões em suas bochechas, parecia dar um jeito de vigiá-lo feito um cão de guarda. As mulheres sem cabelos grisalhos davam uma olhadela para o rosto dela e escolhiam outra pessoa. Enquanto isso, Wil parecia beijar todas as mulheres do acampamento. Ban também, com aquele nariz. Aliás, até Ihvon estava se divertindo. Seria bem feito para Faile se algum daqueles sujeitos quebrasse suas costelas.
Enfim os latoeiros se afastaram, exceto por Raen e Ila, abrindo um espaço em torno do pessoal de Dois Rios. O homem magro e grisalho se curvou em uma mesura formal, com as mãos no peito.
— Vocês vieram em paz. Partam agora em paz. Nossas fogueiras sempre os receberão. O Caminho da Folha é a paz.
— Que a paz esteja sempre com vocês — respondeu Perrin — e com todo o Povo. — Luz, que assim seja. — Eu encontrarei a canção, ou outro a encontrará, mas a canção será cantada, este ano ou em um ano por vir. — Ele se perguntou se algum dia tinha havido uma canção, ou se o início da jornada dos Tuatha’an fora em busca de outra coisa. Elyas dissera que eles não sabiam que canção era, mas saberiam quando a encontrassem. Que encontrem segurança, ao menos. — Assim como foi um dia, assim haverá de ser novamente, neste mundo sem fim.