— Mundo sem fim — responderam os Tuatha’an, em um murmúrio solene. — Mundo e tempo sem fim.
Alguns abraços e apertos de mão finais foram trocados enquanto Ihvon e Faile ajudavam Perrin a montar em Galope. Mais alguns beijos de Wil. E Ban. Ban! Mesmo com aquele nariz! Outros, os bastante feridos, foram erguidos nos cavalos. Os latoeiros acenavam como se dessem adeus a vizinhos que partiam em uma longa viagem.
Raen veio apertar a mão de Perrin.
— Você não quer reconsiderar? — indagou o rapaz de Dois Rios. — Lembro que disse uma vez que havia maldade solta no mundo. Está pior agora, Raen, e está aqui.
— Que a paz esteja convosco, Perrin — respondeu Raen, com um sorriso.
— E convosco — retrucou o rapaz, em um tom triste.
Os Aiel só apareceram quando o grupo já estava uma milha a norte do acampamento dos latoeiros. Bain e Chiad olharam para Faile antes de seguir adiante, até a posição de sempre. Perrin não sabia ao certo o que as duas pensavam que poderia acontecer com Faile no meio dos Tuatha’an.
Gaul postou-se ao lado de Galope, caminhando a passos largos sem esforço. O grupo não avançava muito depressa, com metade dos homens a pé. Ele lançou um olhar avaliativo a Ihvon, como de costume, antes de virar-se para Perrin.
— Sua ferida melhorou?
A ferida doía terrivelmente. Cada passo do cavalo dava um solavanco naquele toco de flecha.
— Estou ótimo — respondeu, sem cerrar os dentes. — Talvez consiga até dançar em Campo de Emond, hoje à noite. E você? Passou uma noite boa jogando O Beijo da Donzela? — Gaul tropeçou e quase caiu de cara no chão. — O que houve?
— Quem foi que você ouviu sugerir esse jogo? — perguntou o Aiel, baixinho, com o olhar fixo à frente.
— Chiad. Por quê?
— Chiad — resmungou Gaul. — A mulher é Goshien. Goshien! Eu devia levá-la de volta às Águas Quentes como gai’shain. — As palavras pareciam raivosas, mas não no tom singular do homem. — Chiad.
— Pode me dizer qual é o problema?
— Um Myrddraal tem menos astúcia que uma mulher — respondeu Gaul, impassível — e um Trolloc luta com mais honra. — Depois de um instante acrescentou, em um tom feroz e mais baixo: — E um bode é mais sensato.
Então apressou o passo e correu adiante para juntar-se às Donzelas. Não falou com elas, pelo que Perrin pôde perceber, apenas reduziu a marcha para caminhar ao lado das duas.
— Você entendeu alguma coisa? — perguntou Perrin a Ihvon.
O Guardião balançou a cabeça.
Faile fungou com desdém.
— Se ele está pensando em causar problemas a elas, as duas vão pendurá-lo de cabeça para baixo em um galho, para esfriar a cabeça.
— Você entendeu? — perguntou Perrin. Faile continuou andando, sem olhar para ele nem responder, o que Perrin interpretou como uma negativa. — Acho que talvez precise cruzar outra vez com o acampamento de Raen. Tem muito tempo que não vejo a tiganza. Foi… interessante.
Ela resmungou algo entre dentes, mas ele entendeu: “Você é que devia ser pendurado de cabeça para baixo!”
Perrin olhou para baixo e abriu um sorriso.
— Mas não vou precisar. Você prometeu dançar essa tal de sa’sara para mim. — Um rubor subiu pelo rosto da jovem. — É parecida com a tiganza? Quer dizer, se não for, não faz muito sentido.
— Seu idiota descerebrado! — gritou ela, de repente, cravando os olhos em Perrin. — Homens deitaram seus corações e fortunas aos pés de mulheres que dançaram a sa’sara. Se minha mãe suspeitasse que sei dançar…
Faile cerrou os dentes, como se tivesse falado demais, e voltou a olhar para a frente. O rubor a cobria por inteiro, desde os cabelos escuros até o decote do vestido.
— Não tem motivo para você dançar — murmurou ele. — Meu coração e fortuna já estão inteirinhos a seus pés.
Faile tropeçou, depois riu baixinho e pressionou o rosto contra a panturrilha dele, coberta pela bota.
— Você é esperto demais — sussurrou. — Um dia vou dançar para você, e seu sangue vai ferver.
— Você já faz isso comigo — respondeu Perrin, e a jovem riu outra vez.
Ela enfiou o braço por trás do estribo e abraçou a perna dele enquanto caminhava.
Depois de um tempo, nem a ideia de Faile dançando — ele imaginou como seria, exagerando a dança das latoeiras, mas tinha que ser muito impressionante para superar — era capaz de competir com a dor na lateral do corpo. Cada passo de Galope era uma agonia. Ele se aguentava com as costas bem retas. Parecia doer um pouquinho menos se sentasse desse jeito. Além do mais, não queria estragar a injeção de ânimo que os Tuatha’an tinham dado ao grupo. Os outros homens também estavam empertigados nas selas, mesmo os que no dia anterior pareciam cabisbaixos e coxos. E Ban, Dannil e os outros caminhavam de cabeça erguida. Perrin não seria o primeiro a esmorecer.
Wil começou a assobiar “Voltando da Falha de Tarwin”, e uns três ou quatro o acompanharam. Depois de um tempo, Ban começou a cantar, a voz grave e clara:
Outros se juntaram no segundo verso, e logo todos estavam cantando, até Ihvon. E Faile. Não Perrin, naturalmente. Muita gente já tinha dito que ele cantava igual a um sapo esmagado. Alguns até começaram a caminhar no compasso da canção.
Perrin balançou a cabeça. Um dia antes, eles estavam prontos para fugir e se esconder. Hoje, cantavam sobre uma batalha tão antiga que deixara em Dois Rios apenas a lembrança dessa canção. Talvez estivessem virando soldados. Teriam de virar, a menos que ele conseguisse fechar o Portal dos Caminhos.
Fazendas começaram a aparecer com mais frequência, mais próximas, até que o grupo se viu cruzando um trecho de terra batida entre campos margeados por cercas-vivas ou muros baixos de pedra bruta. Fazendas abandonadas. Ninguém ali era apegado à terra.
O grupo chegou à Estrada Velha, que corria a norte do Rio Branco, o Manetherendrelle, por Trilha de Deven até Campo de Emond. Enfim começaram a ver ovelhas nos pastos, agrupadas aos montes como se fossem rebanhos de doze homens reunidos, com dez pastores onde antes teriam visto um, metade deles homens feitos. Pastores levando arcos os observaram passar, cantando a plenos pulmões, sem saber muito bem o que pensar.
Perrin também não soube o que pensar de sua primeira visão de Campo de Emond, e, pelo jeito como a cantoria titubeou e morreu, nem os outros homens de Dois Rios.
As árvores, cercas e sebes mais próximas da aldeia haviam simplesmente desaparecido, sido cortadas. As casas mais a oeste de Campo de Emond um dia estiveram rodeadas das árvores da orla da Floresta do Oeste. Os carvalhos e folhas-de-couro entre as casas permaneciam, mas a floresta começava a quinhentos passos, a distância de uma flechada longa, e os machados ressoavam enquanto os homens trabalhavam para cortar ainda mais troncos. Fileiras e mais fileiras de estacas da altura da cintura de um homem, cravadas inclinadas no chão, rodeavam a aldeia a curta distância das casas, formando um cercado contínuo de pontas afiadas, exceto onde passava a estrada. Nos intervalos entre as estacas havia homens parados feito guardas, alguns vestindo partes de armaduras antigas ou camisas de couro com discos de aço enferrujado costurados, uns poucos usando quepes velhos e amassados, com lanças de caça, alabardas desenterradas dos sótãos ou ganchos presos a bastões compridos. Mais homens, e também alguns garotos, todos com arcos nas mãos, vigiavam do alto de alguns dos telhados de sapê. Levantaram-se ao avistar Perrin e os outros chegando e gritaram para os que estavam embaixo.