Para Perrin, Luc abriu um sorriso superior de aprovação.
— Você foi muito bem, meu rapaz. Teve sorte, é claro, mas existe mesmo uma coisa chamada sorte de principiante, não é?
Quando o homem se recolheu para o quarto na estalagem Fonte de Vinho, Perrin pegou a cabeça e a enterrou. Não era coisa para o povo ficar olhando, ainda mais as crianças.
As perguntas se estenderam ao longo do dia, que foi se arrastando, até que Perrin de repente percebeu que o sol já estava bem no alto do céu e ele não havia comido nada. Seu estômago estava mandando recados.
— Senhora al’Caar — começou ele, de cima do estribo, em um tom cansado, chamando a mulher de rosto comprido. — Acho que as crianças podem brincar em qualquer lugar, desde que alguém fique de olho para evitar que elas avancem para além das últimas casas. Luz, mulher, a senhora sabe disso. É claro que conhece as crianças bem mais do que eu! Do contrário, como teria conseguido criar os seus quatro? — O mais novo dela era seis anos mais velho do que ele!
Nela al’Caar franziu o cenho e balançou a cabeça, sacudindo a trança de mechas grisalhas. Por um instante ele pensou que a mulher fosse lhe dar um cascudo por falar com ela daquele jeito. Ele quase desejou que ela o fizesse, para ser diferente de todos os outros que queriam a opinião dele para tudo.
— É claro que conheço as crianças — disse ela. — Só quero garantir que tudo seja feito da forma que você desejar. Vai ser assim, então.
Com um suspiro, ele apenas esperou a mulher dar as costas para virar a rédea de Galope na direção da estalagem Fonte de Vinho. Duas ou três vozes o chamaram, mas ele se recusou a dar ouvidos. Da forma que ele desejasse. Qual era o problema daquela gente? O povo de Dois Rios não agia daquele jeito. Sem dúvida não os campeiros. Arrumavam confusão com tudo. Os debates diante do Conselho da Aldeia, ou entre os integrantes do Conselho, tinham de chegar às vias de fato antes de gerar falatório. E, ainda que o Círculo das Mulheres acreditasse ter mais cautela com as próprias questões, não havia um homem que não soubesse o que significavam mulheres de dentes cerrados pisando firme, de tranças eriçadas, feito rabos de gatos nervosos.
O que eu desejo?, pensou, irritado. O que eu desejo é algo para comer, um lugar onde ninguém venha tagarelar no meu ouvido. Ao pisar diante da estalagem, cambaleou e pensou que poderia acrescentar uma cama a essa listinha. Era apenas meio-dia, Galope estava fazendo todo o trabalho, e ele já se sentia cansado até os ossos. Talvez Faile tivesse razão, afinal de contas. Talvez ir atrás de Loial e Gaul fosse mesmo má ideia.
Quando Perrin adentrou o salão, a Senhora al’Vere deu uma olhadela nele e quase o empurrou em uma cadeira, com um sorriso maternal.
— Já está na hora de você parar um pouco de dar ordens por aí — disse ela, com firmeza. — Campo de Emond pode muito bem sobreviver uma hora por conta própria, enquanto você põe um pouco de comida para dentro. — Ela saiu, apressada, antes que ele conseguisse retrucar que Campo de Emond podia muito bem sobreviver sem ele, ponto.
O salão estava quase vazio. Natti Cauthon estava sentada a uma mesa, enrolando pedaços de atadura e montando uma pilha, mas sem tirar o olho das filhas, do outro lado do salão, embora ambas já tivessem idade para usar tranças. O motivo era muito simples. Bo e Eldrin estavam sentadas uma de cada lado de Aram, incentivando o latoeiro a comer. Dando comida na boca, na verdade, e limpando o queixo do homem. Pelo jeito com que sorriam para o sujeito, Perrin ficou surpreso em não ver Natti à mesa com as duas, de tranças ou não. O rapaz era bonito, ele achava; talvez até mais do que Wil al’Seen. Bo e Eldrin sem dúvida pensavam o mesmo. Aram, por sua vez, retribuía os sorrisos de vez em quando — as duas mocinhas eram belas e bem-feitas de corpo; o homem teria de ser cego para não enxergar, e Perrin não imaginava que Aram não tivesse olhos para belas garotas — porém mal engolia uma colherada sem cravar os olhos arregalados nas lanças e armas de haste apoiadas nas paredes. Para um Tuatha’an devia ser uma visão terrível.
— A Senhora al’Vere falou que você finalmente se cansou da sela — disse Faile, irrompendo pela porta da cozinha. Espantosamente, usava um avental branco comprido, feito o de Marin; as mangas da blusa estavam dobradas até os cotovelos, e ela tinha as mãos sujas de farinha. Como se de repente se desse conta daquilo, ela arrancou o avental, limpando as mãos nele depressa, e pendurou-o no encosto de uma cadeira. — Nunca assei nada antes — disse, baixando as mangas e juntando-se a ele. — Misturar massa de farinha é muito divertido. Acho que vou querer fazer de novo um dia desses.
— Se você não assar — respondeu ele — como é que a gente vai comer pão? Não pretendo passar a vida inteira viajando, comprando comida nem comendo o que conseguir capturar em armadilhas e acertar com arco e funda.
Ela sorriu, como se ele tivesse dito algo muito amável, mas nem por um decreto ele foi capaz de enxergar o quê.
— A cozinheira vai assar, é claro. Imagino que uma das ajudantes, na verdade, mas a cozinheira vai supervisionar.
— A cozinheira — murmurou ele, balançando a cabeça. — Ou uma das ajudantes. Claro. Como é que não pensei nisso?
— O que foi que houve, Perrin? Você parece preocupado. Acho que as defesas estão tão reforçadas quanto é possível sem uma muralha.
— Não é isso. Faile, esse negócio de Perrin Olhos-Dourados está saindo de controle. Não sei quem eles pensam que sou, mas ficam me perguntando o que fazer, se está tudo certo, quando já sabem o que deve ser feito, quando são capazes de descobrir se pararem para pensar por dois minutos.
Ela analisou o rosto dele por um longo instante, com aqueles olhos oblíquos e escuros, então disse:
— Quantos anos faz desde que a Rainha de Andor de fato governou isso aqui?
— A Rainha de Andor? Não sei ao certo. Uns cem, talvez. Duzentos. O que é que isso tem a ver?
— Esse povo não se lembra de como é lidar com uma rainha… ou um rei. Estão tentando descobrir. Você precisa ter paciência com eles.
— Rei? — disse, em um tom fraco. Deixou a cabeça desabar nos braços, em cima da mesa. — Ah, Luz!
Com uma risadinha, Faile lhe afagou os cabelos.
— Bom, talvez não isso. Duvido muito que Morgase aprovaria. Um líder, pelo menos. Mas ela sem dúvida aprovaria um homem que recuperasse terras que seu trono não controla há mais de cem anos. Ela certamente faria desse homem um lorde. Perrin da Casa Aybara, Lorde de Dois Rios. Soa muito bem.
— Dois Rios não precisa de lorde nenhum — respondeu ele, com um grunhido, debruçado na mesa de carvalho. — Nem de reis nem de rainhas. Somos homens livres!
— Homens livres também podem precisar — respondeu ela, com doçura. — Quase todos os homens desejam acreditar em algo maior do que eles mesmos, algo mais vasto que seus próprios campos. É por isso que existem as nações, Perrin, e os povos. Até Raen e Ila se consideram parte de algo maior do que as caravanas que conduzem. Eles perderam os carroções e quase toda a família e os amigos, mas outros Tuatha’an ainda buscam a canção, e eles também vão voltar a buscar, porque pertencem a algo maior do que alguns carroções.
— Isso aqui é de quem? — perguntou Aram subitamente.
Perrin levantou a cabeça. Viu o jovem latoeiro de pé, encarando incomodado as lanças apoiadas nas paredes.
— Elas são de quem quiser, Aram. Ninguém vai machucar você com nenhuma dessas, pode acreditar. — Ele não soube ao certo se Aram havia acreditado, pelo jeito como o rapaz começou a caminhar lentamente pelo salão, com as mãos enfiadas nos bolsos, olhando de soslaio as lanças e alabardas.
Perrin ficou mais do que grato em cravar os talheres no prato de assado de ganso fatiado que Marin trouxe, com nabos, ervilhas e um bom pão de crosta crocante. Ou teria cravado, pelo menos, se Faile não tivesse lhe enfiado um guardanapo com bordados floridos na camisa, feito um babador, e afanado garfo e faca das mãos dele. Ela parecia achar graça em dar comida na boca de Perrin, feito Bo e Eldrin haviam feito com Aram. As meninas Cauthon deram risadinhas para ele, e Natti e Marin também exibiam sorrisinhos. Perrin não enxergava o que havia de tão engraçado. No entanto, estava disposto a acatar a vontade de Faile, ainda que comer sozinho tivesse sido mais fácil. Ela o fazia esticar o pescoço para pegar a comida no garfo.