Um clangor de espadas, vindo das árvores, chegou aos seus ouvidos. Os Guardiões deviam estar exigindo que seus alunos praticassem mais do que o habitual.
Era tudo muito irritante. Laras e suas dicas de beleza, Gawyn e suas piadas, Galad sempre fazendo elogios sem perceber o efeito que seu rosto e sorriso exerciam sobre os batimentos cardíacos de uma mulher. Seria assim que Rand a desejava? O rapaz de fato repararia nela, se ela usasse vestido e ficasse rindo para ele feito uma boboca oferecida?
Ele não tem o direito de esperar uma coisa dessas, ela pensou, furiosa. Era tudo culpa dele. Ela não estaria ali naquele momento, com um vestido estúpido daqueles e sorrindo feito uma idiota, não fosse por ele. Eu uso casaco e calças, e ponto final! Talvez possa até usar um vestido de vez em quando — talvez! — mas não para atrair o olhar de um homem! Aposto que neste exato instante ele está encarando alguma tairena com metade dos seios de fora. Eu posso usar um vestido assim. Vamos ver o que ele vai dizer quando me vir nessa seda azul. Vou mandar fazer um decote até… O que ela estava pensando? O homem havia roubado seu juízo! O Trono de Amyrlin a mantinha ali, sem função alguma, e Rand al’Thor estava lhe embaralhando as ideias! Que o queime! Que o queime por estar fazendo isso comigo!
O som das espadas surgiu outra vez a distância, e ela parou quando uma horda de rapazes irrompeu do meio das árvores portando lanças e facas, com Gawyn na dianteira. Ela reconheceu outros dentre os que tinham vindo treinar com os Guardiões. Uma gritaria se elevou de outro ponto das dependências da Torre, o rugido de homens irados.
— Gawyn! O que é que está havendo?
Ao ouvir a voz de Min, ele deu um giro. Seus olhos azuis se encheram de medo e preocupação, e seu rosto exibia uma máscara de determinação em não ceder a esses sentimentos.
— Min. O que está fazendo…? Saia daqui, Min. É perigoso. — Um bocado dos jovens seguiu correndo, mas a maioria ficou aguardando Gawyn, com impaciência. Parecia que quase todos os alunos dos Guardiões estavam ali.
— Me diga o que está acontecendo, Gawyn!
— A Amyrlin foi deposta hoje de manhã. Saia daqui, Min!
Os rolos de seda caíram das mãos dela.
— Deposta? Não pode ser! Como? Por quê? Em nome da Luz, por quê?
— Gawyn! — chamou um dos rapazes, e outros ecoaram, brandindo as armas.
— Gawyn! O Javali Branco! Gawyn!
— Eu não tenho tempo, Min — disse ele, apressado. — Lutas estão acontecendo por todo canto. Estão dizendo que Hammar está tentando libertar Siuan Sanche. Preciso ir para a Torre, Min. Vá embora! Por favor!
Ele se virou e disparou em direção à Torre. Os outros foram atrás, eriçados, de armas em riste, alguns ainda gritando:
— Gawyn! O Javali Branco! Gawyn! Avante os Jovem Guarda!
Min encarou o grupo.
— Você não disse de que lado está, Gawyn — sussurrou ela.
Agora que ela prestava atenção, a luta ressoava mais alto e com mais nitidez, e os gritos, urros e o baque de metal contra metal pareciam vir de todas as direções. O clamor fez sua pele se arrepiar e seus joelhos tremerem; aquilo não podia estar acontecendo, não ali. Gawyn tinha razão. A coisa mais segura e mais sensata seria sair imediatamente das dependências da Torre. No entanto, não havia como saber quando ou se ela poderia retornar, e ela não conseguia imaginar o que poderia fazer do lado de fora.
— De que me adianta ficar aqui dentro? — perguntou a si mesma, furiosa.
Min, no entanto, não se virou em direção ao portão. Deixando a seda onde havia caído, correu para a mata, procurando um lugar para se esconder. Não achava que alguém enfiaria “Elmindreda” em um espeto, feito um ganso — com calafrios, desejou não ter pensado naquilo — mas não havia por que se arriscar à toa. Cedo ou tarde a luta haveria de cessar, e quando isso acontecesse ela teria de decidir o que fazer em seguida.
Na completa escuridão da cela, Siuan abriu os olhos, se remexeu, estremeceu e parou. Já seria dia lá fora? A pergunta persistia havia um bom tempo. Ela tentara esquecer a dor, diante do luxo de saber que ainda respirava. Porém, a pedra bruta sob seu corpo lhe arranhava os hematomas e ferimentos nas costas. O suor fazia arder todos eles — ela sentia uma massa sólida de dor, dos joelhos até os ombros — e o ar frio por cima a fazia tiritar. Elas pelo menos podiam ter me deixado com a roupa de baixo. O ar cheirava a poeira e mofo seco, velho. Uma das celas no subsolo. Ninguém fora confinado ali desde a época de Artur Asa-de-gavião. Não desde Bonwhin.
Siuan fez uma careta na escuridão; não havia como esquecer. Rangendo os dentes, ergueu o corpo, sentou-se no chão de pedra e tateou em busca de uma parede para se apoiar. Os blocos de pedra da parede estavam frios contra suas costas. Coisinhas pequenas, disse a si mesma. Pense em coisinhas pequenas. Calor. Frio. Quando será que vão me trazer um pouco de água? Se é que trarão.
Ela não resistiu e tentou sentir o anel da Grande Serpente. Já não estava em seus dedos. Não que ela esperasse encontrá-lo; achava que se lembrava do instante em que ele fora removido. As coisas haviam ficado meio nebulosas, depois de um tempo. Nebulosas, ainda bem. Mas ela se lembrava de ter contado tudo às outras, no fim das contas. Quase tudo. O triunfo de preservar uma coisinha aqui, outra ali. Entre as respostas berradas, a ânsia de responder, se ao menos elas parassem, mesmo que por um pouquinho, se ao menos… ela abraçou o próprio corpo para parar de tremer; não adiantou muito. Vou manter a calma. Não estou morta. Preciso me lembrar disso acima de qualquer outra coisa. Não estou morta.
— Mãe? — A voz trêmula de Leane surgiu da escuridão. — Está acordada, Mãe?
— Estou — respondeu Siuan, com um suspiro. Esperava que as outras tivessem libertado Leane, mandado-a para fora da cidade. Foi castigada pela culpa ao sentir certo conforto pela presença da outra mulher na cela. — Lamento muito ter metido você nisso, filh… — Não. Já não tinha o direito de se dirigir a ela daquela forma. — Eu lamento muito, Leane.
Houve um longo instante de silêncio.
— A senhora está… passando bem, Mãe?
— Siuan, Leane. Só Siuan. — Sem perceber, ela tentou abraçar saidar. Não havia nada. Não para ela. Somente um vazio por dentro. Nunca mais. Uma vida inteira de dedicação, e agora estava desorientada, à deriva em um mar muito mais obscuro que aquela cela. Ela limpou uma lágrima do rosto, cheia de raiva por tê-la deixado cair. — Não sou mais o Trono de Amyrlin, Leane. — Um pouco da raiva revelou-se em sua voz. — Suponho que Elaida vá ser elevada em meu lugar. Isso se já não tiver sido. Eu juro, um dia vou servir essa mulher de comida para os lúcios!
A resposta de Leane foi apenas um suspiro longo e desesperador.
O rangido de uma chave no cadeado enferrujado fez Siuan erguer a cabeça; ninguém havia pensado em passar um óleo nas dobradiças antes de jogar as duas lá dentro, e as partes corroídas não queriam girar. Taciturna, ela se forçou a se levantar.
— Levante-se, Leane. Levante-se. — Depois de um instante ouviu a outra mulher aquiescendo e resmungando sozinha entre gemidos baixinhos.
Em um tom de voz levemente mais alto, Leane disse:
— De que vai adiantar?
— Pelo menos não vão encontrar a gente encolhida no chão, chorando. — Ela tentou manter a voz firme. — Podemos lutar, Leane. Enquanto estivermos vivas, podemos lutar. — Ah, Luz, elas me estancaram! Elas me estancaram!