— Não vão nem sequer admitir a verdade — disse Siuan, baixinho — que pretendem fazer exatamente as coisas das quais estão me acusando.
— Amigos das Trevas? — murmurou Leane, assombrada. — Elas chamaram a gente de…?
— E por que não chamariam? — retrucou Siuan, em um sussurro. — Por que não ousariam, se já ousaram tanto?
Elas curvaram os ombros enfiados nos mantos e deixaram que Min as conduzisse para onde fosse. Ela só queria que as duas não estivessem tão sem esperanças.
Enquanto as três se aproximavam de uma saída, Min começou a respirar com mais facilidade. Tinha escondido cavalos em um matagal próximo aos muros, não muito longe de um dos portões ocidentais. Ainda não sabia se seria fácil escapar cavalgando, mas quando chegassem aos cavalos ela sentiria algo muito próximo de liberdade. Sem dúvida os guardas dos portões não impediriam três mulheres de sair. Ela não parava de dizer isso a si mesma.
A porta que procurava surgiu adiante — pequena, de tábuas lisas, que conduzia a um caminho pouco utilizado, no extremo oposto do ponto em que aquela sala onde estavam cruzava com o amplo corredor que levava à Torre — e ela viu de relance o rosto de Elaida, deslizando pelo corredor externo em direção a ela.
Os joelhos de Min desabaram no piso de azulejos com um baque, e ela se encolheu, olhando para o chão, o rosto encoberto pelo capuz, o coração martelando em seu peito. Uma requerente, é só isso que eu sou. Só uma mulher comum, sem nenhuma ligação com o que aconteceu. Ah, Luz, por favor! Ela ergueu a cabeça apenas o bastante para espiar por uma brecha do capuz, meio na expectativa de ver Elaida a encará-la com uma satisfação maligna.
A mulher passou com o passo leve, sem nem olhar na direção de Min, com a estola larga e listrada do Trono de Amyrlin em torno dos ombros. Alviarin seguia atrás, usando a estola da Curadora das Crônicas, branca, para caracterizar sua Ajah. Uma dezena ou mais de Aes Sedai passou bem na cola de Alviarin, a maioria Vermelha, embora Min tivesse visto dois xales de franjas amarelas, um de verdes e outro de marrons. Seis Guardiões flanqueavam a procissão, com as mãos nos punhos das espadas e os olhos alertas. Olhos que passaram de relance pelas três mulheres ajoelhadas e as descartaram.
As três estavam de joelhos, Min notou isso, e também notou que praticamente esperava que Siuan e Leane partissem para cima de Elaida. Ambas ergueram a cabeça apenas o bastante para ver a procissão seguir pelo corredor.
— Pouquíssimas mulheres foram estancadas — disse Siuan, como se para si mesma — e nenhuma sobreviveu por muito tempo, mas dizem que uma das formas de sobreviver é encontrar um desejo tão forte quanto o de canalizar. — Já não se via aquela expressão perdida em seus olhos. — No início, achei que queria estripar Elaida e pendurá-la no sol para secar. Agora sei que não quero absolutamente nada além de um dia poder dizer àquela sanguessuga que ela vai viver uma longa vida servindo como exemplo do que acontece com quem me chama de Amiga das Trevas. Absolutamente nada além!
— E Alviarin — completou Leane com a voz dura. — E Alviarin!
— Eu tive medo de que elas me sentissem — prosseguiu Siuan — mas agora não tenho nada que elas possam sentir. Uma vantagem em ter sido… estancada, ao que parece. — Leane balançou a cabeça, irritada, e Siuan acrescentou: — Precisamos usar todas as vantagens possíveis. E ser gratas por elas. — A última frase soou como se a mulher estivesse tentando convencer a si mesma.
O último Guardião desapareceu na curva ao longe, e Min engoliu o nó que se formou na garganta.
— Podemos falar sobre as vantagens depois — afirmou, com um grasnido, e parou para engolir mais uma vez. — Vamos até os cavalos. Isso só pode ter sido a pior parte.
De fato, enquanto saíam da Torre em direção ao sol do meio-dia, parecia que o pior havia mesmo passado. Uma coluna de fumaça que ia em direção ao céu límpido a leste dos muros da Torre era o único sinal dos problemas que haviam ficado para trás. Grupos de homens se moviam a distância, mas nenhum prestou muita atenção às três mulheres que passavam ligeiras pela biblioteca, construída no formato de ondas suspensas congeladas na pedra. Um caminho levava ao lado ocidental dos muros, mais escondido, até uma floresta de carvalhos e árvores perenes que poderiam existir à margem de qualquer cidade. Min agilizou os passos ao encontrar os três cavalos selados, ainda amarrados ao local onde Laras os deixara, em uma pequena clareira rodeada por folhas-de-couro e cajeputes.
Siuan avançou imediatamente até uma égua forte e peluda, duas mãos menor do que as outras.
— Uma montaria adequada às minhas condições atuais. E parece mais calma que as outras; nunca fui boa cavaleira. — Ela afagou o nariz da égua, e o animal fungou na mão da mulher. — Qual é o nome dela, Min? Você sabe?
— Bela. Ela é de…
— O cavalo dela. — Gawyn surgiu por detrás de um cajepute de tronco grosso, com uma das mãos no comprido cabo de sua espada. O rosto estava sujo de sangue, idêntico à visão que Min tivera no primeiro dia em Tar Valon. — Eu sabia que você devia estar aprontando alguma, Min, quando vi o cavalo dela. — Seus cabelos louro-avermelhados também estavam ensanguentados, e os olhos azuis, meio atordoados, mas ele caminhou calmamente em direção às mulheres, um homem alto com o andar gracioso de um gato. Um gato à caça de ratos.
— Gawyn — começou Min — nós…
A espada do rapaz deslizou da bainha, fazendo esvoaçar o capuz de Siuan, e a lâmina afiada pousou na lateral da garganta dela, tudo mais depressa do que Min foi capaz de acompanhar. Siuan fez um barulho ao prender a respiração e permaneceu imóvel, com os olhos voltados para ele, de aparência tão serena quanto teria se ainda usasse a estola.
— Não, Gawyn! — disse Min, em um arquejo. — Você não pode fazer isso! — Ela deu um passo em direção a ele, mas o homem ergueu a mão livre sem olhar para ela, que parou. Estava rígido feito uma bobina de aço, pronto para avançar em qualquer direção. Min percebeu que Leane havia encoberto uma das mãos com o manto e rezou para que a mulher não fosse estúpida a ponto de desembainhar a faca de cintura.
Gawyn analisou o rosto de Siuan, depois assentiu devagar.
— É você. Eu não tinha certeza, mas é. Esse… disfarce… não pode… — Ele não pareceu se mover, mas um súbito arregalar dos olhos de Siuan revelou que a lâmina fora pressionada com mais força. — Onde estão minha irmã e Egwene? O que vocês fizeram com elas? — O mais assustador para Min era que, mesmo com a máscara de sangue e os olhos vidrados, mesmo com o corpo quase trêmulo de tão tenso e a mão meio erguida, como se tivesse se esquecido de baixá-la, Gawyn jamais alterava a voz nem a revestia de qualquer emoção. Apenas soava cansado; ela nunca vira ninguém tão cansado.
A voz de Siuan soou tão neutra quanto a dele.
— Da última vez que eu soube delas, as duas estavam sãs e salvas. Não posso dizer onde estão agora. Você preferia que estivessem aqui, no meio dessa confusão?
— Nada de joguinhos de palavras de Aes Sedai — retrucou ele, baixinho. — Diga onde elas estão, sem rodeios, para eu saber se você está falando a verdade.
— Illian — respondeu Siuan, sem hesitar. — Na cidade propriamente dita. Estão estudando com uma Aes Sedai chamada Mara Tomanes. Ainda devem estar lá.
— Não estão em Tear — murmurou ele. Por um instante pareceu pensativo. De forma abrupta, completou: — Estão dizendo que você é Amiga das Trevas. Ajah Negra, não é isso?