Na décima manhã, Egwene enfim desmanchou as duas tranças dos cabelos. Foi uma cena muito esquisita. As Sábias conversaram com ela por um tempo enorme, sozinhas, enquanto os gai’shain dobravam as tendas e Rand selava Jeade’en. Se não conhecesse bem a amiga, teria pensado que aquela postura de cabeça baixa era uma tentativa de submissão, mas essa palavra só valia para Egwene se relacionada a Nynaeve. E talvez Moiraine. De súbito, a amiga bateu palmas, rindo e abraçando cada uma das Sábias antes de correr para desfazer as tranças.
Quando Rand perguntou a Aviendha o que estava acontecendo — a jovem estava sentada do lado de fora da tenda quando ele acordou — a Aiel resmungou, em um tom azedo:
— Elas decidiram que Egwene cresceu. — Ela parou de falar de repente, disparou um olhar firme para Rand, cruzou os braços e prosseguiu: — É assunto de Sábias, Rand al’Thor. Pergunte a elas, se quiser saber, mas prepare-se para ouvir que não é da sua conta.
Egwene crescera o quê? Os cabelos? Não fazia sentido. Aviendha não disse mais uma palavra sobre o assunto. Em vez disso, raspou um pedaço de líquen cinza de uma pedra e começou a explicar como usá-lo para cataplasma. Ela estava pegando o jeito das Sábias muito depressa para o gosto de Rand. As próprias Sábias davam pouca atenção a ele. Claro que não era preciso muita dedicação, com Aviendha praticamente empoleirada no ombro dele.
O restante dos Aiel, pelo menos os Jindo, tornavam-se um pouco menos reservados a cada dia, talvez um pouco menos incomodados com o que Aquele Que Vem Com a Aurora representava, mas Aviendha era a única que de fato falava com ele. Todas as noites, Lan vinha praticar a espada, e Rhuarc, ensinar a lança e o estranho jeito Aiel de lutar com as duas mãos e os dois pés. O Guardião sabia um pouco da luta, então juntava-se às sessões de treinamento. A maioria dos outros evitava Rand, sobretudo os condutores dos carroções, que tinham descoberto que ele era o Dragão Renascido, um homem capaz de canalizar. Quando Rand pegava um daqueles homens de feições duras com os olhos cravados nele, parecia que o sujeito estava encarando o próprio Tenebroso. Mas Kadere não fazia isso, e nem o menestrel.
Quase todas as manhãs, quando saíam, o mascate se aproximava montado em uma das mulas dos carroções incendiados pelos Trollocs, o rosto parecendo ainda mais escuro por causa do lenço branco comprido amarrado na cabeça, caindo pelo pescoço. Com Rand, o homem era muito educado, mas seus olhos frios e impassíveis conferiam ao nariz adunco o aspecto de um verdadeiro bico de águia.
— Lorde Dragão — começara ele, na manhã seguinte ao ataque. Então limpara o suor do rosto com o sempre presente lencinho e se remexera, incomodado, sobre a sela surrada que encontrara em algum lugar e pusera na mula. — Posso chamar o senhor assim?
Os destroços chamuscados dos três carroções já despareciam à distância, ao sul. Com eles, iam sumindo as sepulturas de dois homens de Kadere e um bom número de Aiel. Os Trollocs haviam sido arrastados para fora dos acampamentos e largados para os carniceiros, criaturas orelhudas e esganiçadas que Rand não sabia se eram raposas grandes ou cães pequenos — pareciam um pouco de cada — e os abutres com asas com pontas vermelhas. Alguns ainda circundavam o céu, parecendo receosos de aterrissar no meio da confusão.
— Me chame do que quiser — respondera Rand.
— Lorde Dragão. Andei pensando no que o senhor disse ontem. — Kadere olhara em volta como se temesse ser ouvido, ainda que Aviendha estivesse com as Sábias, e os pares de orelha mais próximos fossem do comboio de carroções, a cinquenta passadas ou mais de distância. Mesmo assim, o homem baixara o tom de voz quase a um sussurro, limpando o rosto com nervosismo. Seus olhos, no entanto, não se alteraram. — O que o senhor disse sobre o conhecimento ser valioso e pavimentar a estrada para o sucesso. É verdade.
Rand encarara o homem por um longo instante, sem piscar, mantendo o rosto inexpressivo.
— Foi você quem disse isso, não eu — respondera, por fim.
— Bom, talvez tenha sido. Mas é verdade, não é mesmo, Lorde Dragão? — Rand assentira, e o mascate continuara, ainda sussurrando, os olhos atentos aos bisbilhoteiros. — Mas pode haver perigo no conhecimento. Em dar mais do que receber. Um homem que vende conhecimento não precisa apenas ter seu preço, mas também alguma salvaguarda. Garantias e seguranças contra… repercussões. O senhor não concorda?
— Tem algum conhecimento que queira… vender, Kadere?
O homem atarracado franzira o cenho para o próprio comboio. Keille descera para caminhar um pouco, apesar do calor crescente. O corpanzil estava coberto de branco, e um xale de renda branca fora preso nos cabelos grossos e escuros por pentes de marfim. Ela volta e meia dava uma olhadela para os dois homens cavalgando juntos, a expressão indecifrável àquela distância. Ainda era estranho ver uma pessoa tão corpulenta com movimentos tão ágeis. Isendre subira no banco do condutor do primeiro carroção e observava os dois de forma menos discreta, esticando o corpo para se segurar no canto do carroção branco, que balançava e sacolejava.
— Essa mulher ainda vai acabar me matando — resmungara Kadere. — Talvez possamos conversar de novo mais tarde, Lorde Dragão, se o senhor estiver disposto. — Ele cravou os calcanhares das botas com força na mula, seguiu trotando até o primeiro carroção e subiu no assento do condutor com agilidade surpreendente, amarrando as rédeas da mula a um aro de ferro na lateral do grande caixote que era o carroção. Ele e Isendre desapareceram no interior do veículo e não saíram até a parada da noite.
Ele retornou no dia seguinte, e em outros dias em que viu Rand sozinho, sempre deixando entrever o tal conhecimento que poderia vender a um preço apropriado, se tivesse as salvaguardas apropriadas. Uma das vezes, chegou ao ponto de dizer que qualquer coisa — assassinato, traição, qualquer coisa mesmo — poderia ser perdoada em troca de conhecimento, e pareceu bastante nervoso quando Rand discordou da afirmação. Fosse lá o que o homem desejasse vender, ele parecia querer que Rand o protegesse das consequências de quaisquer crimes que já tivesse cometido na vida.
— Eu não sei se quero comprar conhecimento — respondera Rand, mais de uma vez. — Sempre tem a questão do preço, não é? Tem alguns preços que eu talvez não esteja disposto a pagar.
Natael chamou Rand para um canto naquela primeira noite, depois que as fogueiras foram acesas e o aroma de comida começou a pairar por sobre as tendas baixas. O menestrel parecia quase tão nervoso quando Kadere.
— Pensei bastante a seu respeito — disse ele, olhando para Rand de esguelha, a cabeça inclinada para o lado. — Sua história deveria ser contada em uma grande epopeia. O Dragão Renascido. Aquele Que Vem Com a Aurora. Um homem de sabe-se lá quantas profecias, nesta Era e em outras. — O menestrel envolveu o corpo com o manto, os retalhos coloridos esvoaçando com a brisa. O crepúsculo era breve, no Deserto. A noite e o dia surgiam ligeiros e bem próximos. — Como se sente em relação ao seu destino profetizado? Eu preciso saber, se vier a compor esta epopeia.
— Como eu me sinto? — Rand olhou o acampamento em volta, os Jindo circulando entre as tendas. Quantos deles estariam mortos antes do fim? — Cansado. Eu me sinto cansado.
— Não é uma emoção muito heroica — murmurou Natael. — Mas esperada, dado o seu destino. Levando o mundo nos ombros, com a maioria disposta a matá-lo, se tivesse chance, e o restante dos idiotas pensando que pode usá-lo como trampolim para o poder e a glória.
— E qual desses é você, Natael?
— Eu? Eu sou um simples menestrel. — O homem erguera uma ponta do manto coberto de retalhos, como se para comprovar. — Não tomaria o seu lugar nem que me oferecessem o mundo inteiro, não com o destino que vem junto. Morte, loucura ou ambos. “Seu sangue nas pedras de Shayol Ghul…” é isso que diz o Ciclo de Karaethon, as Profecias do Dragão, não é? Que você vai morrer para salvar uns idiotas que vão suspirar aliviados depois da sua morte. Não, eu não aceitaria isso nem por todo o poder do mundo, ou por mais.