Uma lâmina de aço teria ficado presa, mas a espada forjada em fogo se soltou com facilidade assim que a criatura caiu. Por um instante, nas profundezas do coração do Vazio, Rand examinou a coisa a seus pés. Aquela canção. Se não estivesse protegido das emoções, se o Vazio não o mantivesse distante e desapaixonado, aquela canção teria arrebatado sua mente. O Draghkar sem dúvida acreditava que tinha, quando veio avançando com tanto desejo.
Aviendha saiu correndo, passou por ele e ajoelhou-se ao lado de Chion. Ela buscou o pulso da gai’shain.
— Morta — anunciou, fechando as pálpebras da mulher. — Talvez tenha sido melhor assim. Os Draghkar devoram a alma, antes de consumir a vida. Um Draghkar! Aqui! — Ela cravou os olhos na criatura, ainda agachada. — Trollocs na Parada de Imre, e, agora, um Draghkar aqui. Você está trazendo um tempo ruim para a Terra da…
Com um urro, a mulher se jogou por cima de Chion no segundo em que Rand ergueu a espada.
Uma barra de fogo sólido disparou da lâmina da espada, por cima de Aviendha, e acertou o peito do Draghkar que apareceu à porta. Irrompendo em chamas, a Criatura da Sombra cambaleou para trás, gritando, tropeçando, batendo as asas flamejantes.
— Acorde todo mundo — disse Rand, muito calmo. Chion lutara? Até onde sua honra a levara? Não fazia diferença. Era mais fácil matar Draghkar que Myrddraal, mas eles eram mais perigosos, à sua própria maneira. — Se souber soar o alarme, faça isso.
— O gongo perto da porta…
— Pode deixar que eu faço. Acorde todo mundo. Pode haver mais do que dois.
Aviendha assentiu e disparou por onde haviam vindo, gritando:
— Lanças a postos! Acordem, lanças a postos!
Rand saiu, receoso, com a espada pronta, preenchido pelo Poder, exaltado. Enjoado. Queria rir, queria vomitar. A noite estava congelante, mas ele mal notava o frio.
O Draghkar em chamas jazia esparramado na horta do terraço, fedendo a carne queimada, somando a luz de seu fogo baixo ao luar. Um pouco mais abaixo jazia Seana, os longos cabelos grisalhos espalhados feito um leque, encarando o céu de olhos arregalados, sem piscar. A faca de cintura estava caída a seu lado, mas a arma não tinha chance contra um Draghkar.
Ao mesmo tempo em que Rand agarrou o malho pendurado ao lado do gongo quadrado de bronze, o pandemônio irrompeu na entrada do cânion: berros humanos e uivos de Trollocs, clangor de aço, gritaria. Ele soou o gongo com força, um badalo sonoro ecoou pelo cânion. Quase no mesmo instante, outro gongo soou, depois outro, e de dezenas de bocas irrompeu o chamado:
— Lanças a postos!
Gritos confusos se ergueram ao redor dos carroções dos mascates, abaixo. Retângulos de luz apareceram, e portas se abriram nos dois carroções em forma de caixotes, emitindo um brilho branco ao luar. Alguém gritava de raiva lá embaixo — uma mulher, mas Rand não soube dizer quem.
Asas bateram no ar acima dele. Rosnando, Rand ergueu a espada de fogo. Sentiu o Poder Único arder dentro de si, e fogo emanou da lâmina. O Draghkar, curvado, explodiu em chamas, em uma chuva de nacos grossos que desapareceram na escuridão abaixo.
— Aqui — disse Rhuarc. Os olhos do chefe estavam inflexíveis por cima do véu negro. Todo vestido, ele carregava broquel e lanças. Mat vinha logo atrás, sem casaco nem chapéu, com a camisa meio para fora das calças, piscando, hesitante, agarrando a lança de punho preto com as duas mãos.
Rand pegou a shoufa que Rhuarc oferecia, então largou-a no chão. Uma silhueta com asas de morcego deu um giro, cruzou a lua e desceu na outra extremidade do cânion, esvanecendo em meio às sombras.
— Eles estão me caçando. Deixe que vejam o meu rosto. — O Poder oscilou dentro dele, a espada em sua mão tremulou, parecia um pequeno sol a iluminá-lo. — Não vão poder me encontrar se não souberem onde estou.
Rindo, pois os outros eram incapazes de entender a piada, Rand saiu correndo, descendo em direção ao som da batalha.
Puxando a lança do peito de um Trolloc com focinho de javali, Mat se agachou, os olhos vasculhando a escuridão iluminada pelo luar perto da entrada do cânion, à procura de outro. Que o queime, Rand! Nenhuma das silhuetas que vira se movendo era grande o suficiente para ser um Trolloc. Sempre me atirando em cima dessas malditas criaturas! Gemidos baixos vinham dos feridos. Uma forma sombreada, que ele pensou ser Moiraine, ajoelhou-se ao lado de um Aiel caído. As bolas de fogo que ela atirava eram impressionantes, quase tanto quanto a tal espada de Rand, jorrando barras de fogo. A coisa ainda reluzia, e um círculo de luz rodeava o homem. Eu devia ter ficado debaixo das cobertas, era isso que eu devia ter feito. Está um frio desgraçado, e eu não tenho nada a ver com essa história! Outros Aiel começaram a aparecer, mulheres de saias vindo ajudar os feridos. Algumas portavam lanças. Talvez não lutassem em condições normais, mas, se a batalha tomava o forte, não ficavam paradas assistindo.
Uma Donzela parou ao lado dele e removeu o véu. Mat não conseguiu distinguir seu rosto, todo envolto em sombras.
— Você dança muito bem com a lança, jogador. Dias estranhos, com Trollocs chegando às Pedras Frias. — Ela olhou a silhueta sombreada que Mat pensava ser Moiraine. — Sem as Aes Sedai, talvez eles tivessem forçado uma avançada.
— Não estavam em número suficiente para isso — respondeu ele, sem pensar. — A intenção era chamar a atenção para cá. — Para que os tais Draghkar ficassem livres para atacar Rand?
— Acho que você tem razão — respondeu a Donzela, receosa. — Você é algum líder de batalha entre os aguacentos?
Mat desejou ter ficado de boca fechada.
— Eu li um livro, uma vez — balbuciou, virando as costas. Porcarias de trechos de lembranças de outros homens. Talvez os mascates quisessem ir embora, depois disso.
Quando parou próximo aos carroções, no entanto, não viu Keille nem Kadere por ali. Os condutores estavam aglomerados, passando jarras de algo que cheirava como o bom conhaque que andavam vendendo, em um burburinho agitado, como se os Trollocs tivessem chegado bem perto deles. Isendre estava parada no topo dos degraus do carroção de Kadere, olhando emburrada para o nada. Até de cenho franzido a mulher era bonita, por detrás daquele lenço fino. Mat ficou satisfeito em ver que pelo menos suas lembranças de mulheres permaneciam inalteradas.
— Os Trollocs já eram — comentou, apoiando-se na lança de modo que a mulher pudesse vê-la claramente. Não faz sentido arriscar o pescoço desse jeito se eu não ganhar nada em troca. Não precisou de esforço para soar cansado. — Uma luta difícil, mas agora você está a salvo.
Isendre o encarou, com o rosto inexpressivo, os olhos reluzentes ao luar feito duas pedras negras polidas. Sem dizer uma palavra, a mulher deu as costas, entrou no carroção e bateu a porta. Com força.
Mat soltou um suspiro longo e cansado, depois afastou-se dos carroções. O que precisava fazer para impressionar aquela mulher? Queria era uma cama. Voltar para debaixo das cobertas e deixar Rand cuidar dos Trollocs e dos malditos Draghkar. O sujeito parecia até gostar. Rindo daquele jeito.
Rand veio subindo pelo cânion, o brilho da espada parecia um lampião a envolvê-lo pela noite. Aviendha correu para encontrá-lo, com as saias puxadas por cima dos joelhos. Então parou, largou as saias, ajeitou-as e postou-se ao lado de Rand, enrolando o xale na cabeça. O jovem pareceu não tê-la notado, e a mulher tinha o rosto duro feito pedra. Os dois se mereciam.
— Rand — chamou uma sombra com a voz de Moiraine, quase tão melodiosa quanto a de Keille, mas de uma melodia fria. O rapaz se virou, à espera, e a Aes Sedai seguiu devagar para onde pudesse ser vista com clareza, adentrando a luz, majestosa o bastante para qualquer palácio. — A situação está ficando mais perigosa, Rand. Pode ser que o ataque à Parada de Imre tenha sido para os Aiel, apesar de pouco provável, mas esta noite o alvo dos Draghkar sem dúvida foi você.