Na beirada da água havia um deque robusto de madeira, com uma corda pesada caída no rio ligeiro. A corda corria pelos aros de ferro de uma barcaça de soalho plano acomodada no deque. A barca ainda estava ali, ainda utilizável.
Um salto o levou para o outro lado do rio, onde sulcos de rodas marcavam a margem e objetos domésticos jaziam pelo chão. Cadeiras e espelhos, baús, até algumas mesas e um guarda-roupas polido com entalhes de pássaros nas portas, todas as coisas que o povo desesperado tentara salvar, depois abandonara para poder avançar mais depressa. Todos deviam estar espalhando a notícia do que acontecera ali, do que estava acontecendo em Dois Rios. Àquela altura, alguns já deviam ter chegado a Baerlon, umas cem milhas ou mais ao norte, e sem dúvida às fazendas e aldeias entre Baerlon e o rio. As notícias corriam. Em mais um mês talvez chegassem a Caemlyn e à Rainha Morgase, com sua Guarda da Rainha e seu poder para reunir exércitos. Um mês, com sorte. E outro mês para retornar, se Morgase acreditasse. Tarde demais para Campo de Emond. Talvez tarde demais para toda Dois Rios.
Ainda assim, quase não fazia sentido que os Trollocs deixassem alguém escapar. Ou os Myrddraal, na verdade. Os Trollocs não pareciam pensar muito para além do momento presente. Imaginava que destruir a barca teria sido a primeira tarefa dos Desvanecidos. Como poderiam ter certeza de que não havia soldados suficientes em Baerlon para derrotá-los?
Ele se abaixou para pegar uma boneca de madeira com o rosto pintado, e uma flecha zuniu por onde estivera seu peito.
Perrin se levantou com um salto e disparou margem acima, um borrão se formando pela floresta. Parou cem passadas à frente para se acocorar sob uma imensa folha-de-couro. Arbustos e árvores tombadas para dentro d’água e cobertas de trepadeiras revestiam o chão da floresta à sua volta.
Matador. Perrin encaixou uma flecha no arco, sem saber se a puxara de dentro da aljava ou simplesmente imaginara que estava ali. Matador.
Quando estava prestes a saltar novamente, parou. Matador saberia mais ou menos onde ele estava. Perrin já seguira o borrão formado pelo homem com bastante facilidade. A faixa alongada era bem nítida quando a pessoa estava parada olhando. Por duas vezes, entrara no jogo do outro e quase levara a pior. Matador que jogasse, dessa vez. Ele aguardou.
Corvos mergulhavam por sobre os topos das árvores, vasculhando e gritando. Nenhum movimento o entregava; nem sequer um leve tremor. Apenas seus olhos se moviam, perscrutando a floresta ao redor. Uma lufada de ar errante trouxe um cheiro frio, ao mesmo tempo humano e inumano, e Perrin sorriu. Nenhum som ainda, exceto o dos corvos. Esse Matador era um ótimo espreitador. Mas não estava acostumado a ser caçado. O que mais o sujeito esquecera, além dos cheiros? Sem dúvida não esperava que Perrin permanecesse onde aterrissara. Os animais fugiam do caçador. Até mesmo os lobos.
Um indício de movimento, e, por um instante, um rosto surgiu por cima de um pinheiro caído a uns cinquenta passos de distância. A luz oblíqua iluminava com clareza. Cabelos escuros e olhos azuis, um rosto todo rígido e anguloso, tão parecido com o de Lan. Só que, naquele breve instante, o Matador umedeceu os lábios duas vezes, franziu a testa, e arregalou os olhos, à procura. Lan não deixaria transparecer a inquietação nem que estivesse sozinho diante de mil Trollocs. Apenas um instante, e o rosto sumiu outra vez. Os corvos saltaram e revoaram pelo céu, como se compartilhassem a ansiedade de Matador, com medo de descer além das copas das árvores.
Perrin aguardava e observava, imóvel. Silêncio. Apenas o cheiro frio informava que não estava sozinho com os corvos acima de sua cabeça.
O rosto de Matador surgiu outra vez, espiando por detrás de um carvalho de tronco robusto à esquerda. Os carvalhos matavam quase tudo o que crescia à volta, apenas uns cogumelos e ervas daninhas brotavam no húmus folhoso sob seus galhos. O homem surgiu bem devagar, e as botas não emitiam som.
Em um só movimento, Perrin apontou e disparou. Os corvos emitiram gritos de aviso, e o Matador girou para receber a flecha no peito, mas não no coração. O homem soltou um uivo e agarrou a flecha com as duas mãos. Penas negras caíram no chão quando os corvos bateram as asas em frenesi. O Matador esvaneceu com um grito, tornando-se nebuloso, transparente, desaparecendo. Os guinchos dos corvos pararam de repente, como se tivessem sido cortados com uma faca. A flecha que perfurara o homem caiu no chão. Os corvos também desapareceram.
Com uma segunda flecha meio erguida, Perrin exalou lentamente, relaxando a tensão da corda do arco. A morte era assim, por ali? A pessoa simplesmente desaparecia, sumia para sempre?
— Pelo menos acabei com ele — murmurou Perrin.
E se desviara do objetivo. O Matador não estava entre os motivos pelo qual viera ao sonho de lobo. Pelo menos agora os lobos estavam seguros. Os lobos… e talvez alguns outros.
Ele saiu do sonho…
… e acordou encarando o teto, a camisa toda suada e grudada no corpo. O luar iluminava um pouco pelas janelas. Em algum ponto da aldeia havia rabecas tocando uma alegre melodia dos latoeiros. Eles não lutavam, mas tinham encontrado uma forma de ajudar, animando o povo.
Perrin sentou-se devagar, calçando as botas no breu parcamente iluminado. Como fazer o que era preciso? Seria difícil. Teria que ser astuto. No entanto, não sabia se algum dia na vida tinha sido astuto. Levantou-se e pisou firme para ajeitar as botas.
Gritos súbitos do lado de fora e o som indistinto de cascos o fizeram correr até a janela mais próxima e erguer o caixilho. Os Companheiros estavam em polvorosa lá embaixo.
— O que está havendo?
Trinta rostos se viraram para ele, e Ban al’Seen gritou:
— Foi o Lorde Luc, Lorde Perrin. Quase atropelou Wil e Tell. Acho que nem viu os dois. Estava todo corcunda em cima da sela, parecia ferido. Esporeava aquele cavalo com toda a força.
Perrin coçou a barba. Luc sem dúvida não estava ferido mais cedo. Luc… o Matador? Era impossível. O Matador, com seus cabelos escuros, parecia primo ou irmão de Lan. Se Luc, com aquele cabelo louro-avermelhado, parecia alguém, talvez fosse Rand. Ao menos um pouco. Os dois não podiam ser mais diferentes um do outro. E, ainda assim… aquele cheiro frio. Eles não tinham o mesmo cheiro, mas ambos exalavam um aroma gélido, quase inumano. Seus ouvidos captaram o som de carroções sendo puxados para abrir caminho na Estrada Velha, além de gritos de pressa. Mesmo que Ban e os Companheiros corressem, já não conseguiriam alcançar o homem. Cascos galoparam com força para o sul.
— Ban — gritou — se Luc aparecer outra vez, o mantenham sob vigilância. — Ele fez uma pausa meio longa e acrescentou: — E não me chame assim!
Em seguida, baixou o caixilho de volta, com um estrondo.
Luc e o Matador; o Matador e Luc. Como poderiam ser a mesma pessoa? Era realmente impossível. Por outro lado, menos de dois anos antes ele sequer acreditava em Trollocs ou Desvanecidos. Havia tempo suficiente para se preocupar, caso pusesse outra vez as mãos no sujeito. Agora havia Colina da Vigília, Trilha de Deven e… Alguns poderiam ser salvos. Nem todos em Dois Rios precisavam morrer.
A caminho do salão, ele fez uma pausa no topo da escada. Aram estava parado no último degrau, observando-o, aguardando para seguir suas ordens. Gaul jazia estirado em um catre próximo à lareira, com uma atadura grossa na coxa esquerda, aparentemente dormindo. Faile e as duas Donzelas estavam sentadas no chão perto dele, de pernas cruzadas, conversando baixinho. Havia um catre bem maior do outro lado do salão, mas Loial estava sentado em um banco, as pernas esticadas para caber debaixo de uma das mesas, quase todo envergado para poder rascunhar com uma pena à luz de uma vela. Sem dúvida estava registrando o que acontecera na viagem para fechar o Portal dos Caminhos. E, se Perrin conhecia Loial, o relato do Ogier atribuiria todos os feitos a Gaul, não importava se era verdade ou não. Loial parecia acreditar que nada do que fazia era de fato corajoso ou digno de nota. Exceto por eles, o salão estava vazio. Ainda dava para ouvir as rabecas. Pensou reconhecer a melodia. Já não era uma canção latoeira. “Meu amor é uma rosa selvagem”.