— Eu não preciso de Andric — resmungou Amathera. Elayne poderia jurar que a mulher quase dissera “agora”. — A minha Legião tem soldados rodeando o palácio. Eu sei disso. Não me permitiram falar com nenhum deles, mas quando me virem e ouvirem a minha voz vão fazer o que tem de ser feito, sim? Vocês, Aes Sedai, não podem usar o Poder Único para fazer mal… — A voz dela foi morrendo, e ela fez uma cara emburrada de desprezo para Temaile. — Pelo menos vocês não podem usar o Poder como arma, sim? Eu sei disso.
Elayne surpreendeu a si mesma urdindo minúsculos fluxos de Ar, um para cada trança de Amathera. As tranças flutuaram, e a beiçudinha besta não teve escolha a não ser acompanhá-las nas pontas dos pés. Elayne a fez caminhar daquele jeito até a mulher parar diante dela, com os olhos escuros arregalados e indignados.
— Escute bem, Panarca Amathera de Tarabon — disse ela, em um tom gélido. — Se tentar ir até os soldados, as comparsas de Temaile podem muito bem embrulhar você em uma trouxa e mandá-la de volta para ela. E pior, elas vão saber que eu e minhas amigas estamos aqui, e isso eu não vou permitir. Vamos sair daqui de fininho, e se você não concordar com isso, vou amarrá-la e amordaçá-la aqui, do lado de Temaile, para que as amigas dela encontrem. — Tinha de haver alguma forma de levar Temaile também. — Está me entendendo?
Amathera assentiu sutilmente, ainda emburrada. Egeanin emitiu um sonzinho de aprovação.
Elayne soltou os fluxos; os calcanhares da mulher tocaram o chão.
— Agora vamos ver se encontramos alguma coisa para você usar que seja adequada à fuga. — Amathera assentiu outra vez, mas com um bico ainda maior. Elayne desejou que Nynaeve estivesse passando momentos mais tranquilos.
Nynaeve adentrou o grande salão de exibição com sua infinidade de colunas delgadas, já abanando o espanador de penas. A coleção decerto sempre precisava ser espanada, e sem dúvida uma mulher fazendo seu trabalho não despertaria a atenção de ninguém. Ela espiou ao redor, os olhos atraídos para uns ossos presos por arames que pareciam um cavalo de pernas compridas e um pescoço que deslocava o crânio uns vinte pés para cima. O amplo aposento estava vazio.
A qualquer momento, no entanto, alguém poderia entrar; serviçais que de fato estivessem ali para trabalhar, ou Liandrin e todas as comparsas para vasculhar. Ainda erguendo o espanador com proeminência, só por garantia, ela correu até o pedestal de pedra branca que abrigava a coleira e os braceletes foscos. Só percebeu que prendia a respiração quando exalou o ar ao ver que tudo continuava lá. A mesinha lateral de vidro, que continha o selo de cuendillar, jazia a uns cinquenta passos de distância, mas o pedestal ficava mais perto.
Ela ultrapassou a corda de seda branca, tão grossa quanto um punho, e tocou a coleira, espessa e articulada. Sofrimento. Agonia. Angústia. As sensações a percorreram; ela quis chorar. Que tipo de coisa poderia absorver toda aquela dor? Afastando a mão, cravou o olhar no metal negro. Feito para controlar um homem capaz de canalizar. Liandrin e suas irmãs Negras pretendiam usá-lo para controlar Rand, voltá-lo para a Sombra, forçá-lo a servir ao Tenebroso. Uma pessoa de sua aldeia, controlada e usada por Aes Sedai! Ajah Negra, mas ainda assim Aes Sedai, feito Moiraine com suas tramoias! Egeanin, me fazendo gostar de uma Seanchan imunda!
O súbito contrassenso do último pensamento a tomou; de repente ela se deu conta de que estava deliberadamente provocando raiva em si mesma, raiva suficiente para canalizar. Abraçou a Fonte; o Poder a preencheu. E uma serviçal com a árvore e a folha no ombro adentrou o salão cheio de colunas.
Trêmula com o ímpeto de canalizar, Nynaeve aguardou, chegando a erguer o espanador e passando as penas pela coleira e os braceletes. A serviçal começou a avançar pelo piso de pedras claras; sairia em um instante, e Nynaeve poderia… o quê? Meter os objetos na bolsa do cinto e levá-los, mas…
A serviçal iria sair? Por que eu pensei que ela iria sair e não ficar aqui trabalhando? Ela olhou de esguelha para a mulher que vinha em sua direção. Claro. Nenhuma vassoura, nenhum esfregão, nenhum espanador ou pano de pó. Seja lá por que ela está aqui, não pode levar mui…
De repente, ela enxergou claramente o rosto da mulher. Robusto e vistoso, emoldurado por tranças escuras. Com um sorriso quase amistoso, mas distraído. De forma alguma ameaçador, sem dúvida. Não era bem o mesmo rosto, mas ela o reconheceu.
Nynaeve atacou sem nem pensar, tecendo um fluxo de Ar duro feito um martelo para esmagar aquela cara. Em um instante o brilho tênue de saidar cercou a outra mulher, a expressão dela se alterou — de certa forma agora mais majestosa, mais imponente, o rosto verdadeiro de Moghedien; ela estava atônita e surpresa por não ter conseguido chegar despercebida — e o fluxo de Nynaeve veio rente como o fio de uma navalha. Ela cambaleou sob o ricochete do açoite, feito um golpe físico, e a Abandonada rebateu com uma complexa trama de Espírito entremeada de Água e Ar. Nynaeve não tinha ideia do que aquilo causaria; frenética, tentou interrompê-lo como vira a outra mulher fazer, com uma trama de Espírito violenta. Por um brevíssimo instante, ela sentiu amor, devoção, veneração pela magnífica mulher que concederia permissão para que ela…
A trama intrincada se rompeu, e Moghedien tropeçou. Ainda havia um resquício dentro da mente de Nynaeve, uma espécie de lembrança vívida, uma vontade de obedecer, de agradar, de se rastejar, de repetir o que acontecera no primeiro encontro entre elas; aquilo inflamou seu ódio. O escudo afiado que Egwene utilizara para estancar Amico Nagoyin formou-se de repente, mais arma do que escudo, prestes a cortar para sempre o contato de Moghedien com a Fonte, mas no último segundo o fluxo de Espírito foi aparado por outro semelhante. Mais um contragolpe partiu da Abandonada, dilacerante feito um machado, planejado para apartar Nynaeve da mesma forma. Para sempre. Desesperada, Nynaeve bloqueou.
De súbito ela percebeu que, por baixo da raiva, estava apavorada. Refrear as tentativas da outra mulher de estancá-la enquanto tentava fazer o mesmo lhe consumia todas as forças. O Poder ebulia de tal forma dentro de si que ela achava que iria explodir; seus joelhos tremiam com o esforço para manter-se de pé. E o foco era atacar e se defender; ela não podia dispensar nem o suficiente para acender uma vela. O machado de Espírito de Moghedien ora ficava mais afiado, ora menos, mas não faria a menor diferença se ela conseguisse acertá-la; Nynaeve não via nenhuma real distinção entre ser estancada pela mulher ou ser apenas — apenas! — blindada e submetida a ela. A força da outra roçou o fluxo de Poder da Fonte que havia dentro dela, feito uma faca pairando sobre o pescoço esticado de uma galinha. A imagem era bastante adequada; ela desejou não ter pensado naquilo. No fundinho de sua cabeça, uma vozinha balbuciou. Ah, Luz, não deixe que ela consiga. Não deixe! Luz, por favor, isso não!
Por um instante, considerou desistir de tentar estancar Moghedien — um dos motivos era a necessidade de manter seu fluxo afiado como a ponta de uma navalha, o que estava muito difícil — e usar toda a força para conter o ataque de Moghedien, forçá-lo a recuar, talvez rompê-lo. Porém, se tentasse isso, a outra mulher não precisaria se defender e poderia acrescentar aquela força ao seu próprio ataque. E ela era uma Abandonada; não só uma irmã Negra. Uma mulher que tinha sido Aes Sedai na Era das Lendas, quando os Aes Sedai eram capazes de fazer coisas que nos dias atuais eram impensáveis. Se Moghedien a atacasse com toda a sua força …