Egeanin tocou a coleira e empurrou os braceletes para longe. Se sentia alguma emoção aprisionada neles, não demonstrou. Talvez a sensibilidade viesse apenas com a capacidade de canalizar.
— Isso aqui não é um a’dam — declarou a Seanchan. — É feito em uma só peça de um metal coberto de prata.
Nynaeve desejou que a mulher não tivesse mencionado o a’dam.
Mas ela nunca usou o bracelete de um a’dam. E de fato soltou aquela coitada de quem nos falou. Coitada. Era ela — a tal Bethamin — quem controlava as mulheres com o a’dam. Egeanin demonstrara mais piedade do que Nynaeve jamais teria.
— Isso é tão parecido com um a’dam quanto eu sou com você, Egeanin.
A Seanchan ficou espantada, mas, depois de um instante, assentiu. Não tão diferentes assim. Duas mulheres, cada uma fazendo o melhor que podia.
— Você pretende continuar atrás de Liandrin? — Juilin estava sentado, os braços cruzados sobre a mesa, analisando os objetos dispostos. — Ela pode até ir embora de Tanchico, mas ainda estará à solta. E as outras também. Só que esses objetos parecem importantes demais para serem deixados por aí. Eu sou apenas um caçador de ladrões, mas acho que eles devem ser levados à Torre Branca, só por garantia.
— Não! — Nynaeve se espantou com a própria veemência. Os outros também, pela maneira como a encararam. Devagar, ela apanhou o selo e o recolocou na bolsa. — Isso aqui vai para a Torre. Mas aqueles… — Ela não queria tocar outra vez nos objetos pretos. Se chegassem à Torre, as Aes Sedai poderiam decidir fazer o mesmo uso deles que a Ajah Negra imaginara. Controlar Rand. Moiraine faria isso? Siuan Sanche? Ela não pretendia correr o risco. — Eles são muitos perigosos para que a gente arrisque vê-los outra vez nas mãos de Amigos das Trevas. Elayne, consegue destruí-los? Derreta. Não me interessa se vão queimar a mesa. Só destrua essas coisas!
— Concordo com você — respondeu Elayne, com uma careta.
Nynaeve duvidava. Elayne acreditava na Torre de todo o coração. Mas também acreditava em Rand.
Nynaeve não viu o brilho tênue de saidar, claro, mas a forma atenta como a garota encarava os objetos vis era sinal de que estava canalizando. Os braceletes e o colar jaziam ali. Elayne franziu o cenho, e seu olhar ficou mais concentrado. De repente, ela sacudiu a cabeça. Aproximou a mão por um instante, hesitante, de um dos braceletes, antes de apanhá-lo. E soltou-o outra vez, com um arquejo.
— A sensação é de… é cheio de… — Ela respirou fundo e continuou: — Eu fiz o que você pediu, Nynaeve. Se fosse um martelo, estaria derretido, pelo tanto de Fogo que urdi em cima, mas isso aqui não está nem quente.
Então Moghedien não tinha mentido. Sem dúvida pensara que não havia necessidade, que sua vitória era garantida. Como a mulher se soltou?
O que fazer com aquelas coisas? Ela não as deixaria cair nas mãos de ninguém.
— Mestre Domon, o senhor conhece uma parte do mar bem profunda?
— Conheço, sim, Senhora al’Meara — respondeu o homem, relutante.
Com cautela, tentando não sentir qualquer emoção, Nynaeve empurrou a coleira e os braceletes pela mesa em direção a ele.
— Então jogue isso no mar, onde ninguém nunca mais conseguirá pescar de volta.
Depois de um instante, o homem assentiu.
— Pode deixar. — Ele enfiou os objetos depressa no bolso do casaco, claramente incomodado de tocar algo com uma relação tão estreita com o Poder. — Na profundeza mais profunda do mar que eu conheço, perto de Aile Somera.
Egeanin encarou o chão, de cenho franzido, decerto pensando na partida do illianense. Nynaeve não se esquecera de que a mulher chamara Domon de “um homem de porte muito adequado”. Até ela sentia vontade de rir. Estava quase acabado. Assim que Domon pudesse sair com o navio, a coleira e os braceletes odiosos iriam embora para sempre. Ela e Elayne poderiam partir para Tar Valon. E depois… Depois voltar para Tear, ou para onde al’Lan Mandragoran estivesse. Enfrentar Moghedien, perceber quão perto estivera da morte ou de coisa pior, apenas fizera crescer sua urgência em resolver as coisas com ele. Um homem ela precisava dividir com uma mulher que odiava. No entanto, se Egeanin podia olhar com afeição para um homem a quem fizera prisioneiro — e Domon sem dúvida a olhava com interesse — e se Elayne era capaz de amar um homem fadado a enlouquecer, então ela poderia descobrir uma forma de desfrutar do que Lan fosse capaz de lhe dar.
— Vamos descer e conferir se “Thera” está se saindo bem como serviçal? — sugeriu.
Em breve, partiria rumo a Tar Valon. Em breve.
56
Olhos-Dourados
O salão da estalagem Fonte de Vinho estava silencioso, exceto pelo som dos rabiscos da caneta de Perrin. Silencioso e vazio, a não ser por ele e Aram. A luz do fim da manhã entrava pelas janelas. Da cozinha não vinha aroma algum. Não havia fogões acesos na aldeia, e até os carvões enfiados nas cinzas haviam sido encharcados. Não havia motivo para deixar o dom do fogo à mão. O latoeiro — ele às vezes se perguntava se era adequado ainda pensar em Aram como um latoeiro, mas um homem não podia deixar de ser o que era, portando uma espada ou não — permanecia encostado na parede, perto da porta principal, observando Perrin. O que ele esperava? O que queria? Mergulhando a pena no potinho de pedra cheio de tinta, Perrin pôs de lado a terceira folha de papel e começou a rabiscar a quarta.
Ban al’Seen abriu a porta, de arco na mão, e esfregou um dedo inquieto no nariz, para cima e para baixo.
— Os Aiel estão de volta — anunciou, baixinho, mas seus pés se remexiam como se tivessem vida própria. — Trollocs estão vindo do norte e do sul. Milhares deles, Lorde Perrin.
— Não me chame assim — retrucou o rapaz, distraído, o cenho franzido para a folha de papel.
Não tinha jeito com as palavras. Com certeza não sabia dizer as coisas do jeito rebuscado que as mulheres gostavam. Só conseguia escrever o que sentia. Mergulhou a pena outra vez no tinteiro e acrescentou mais algumas linhas.
Não vou pedir seu perdão pelo que fiz. Não sei se você seria capaz de me perdoar, mas não vou pedir isso. Você é mais preciosa para mim que minha própria vida. Não pense que eu a abandonei. Quando o sol brilhar em seu rosto, será o meu sorriso. Quando você ouvir a brisa soprando nas flores das macieiras, serei eu sussurrando “eu te amo”. O meu amor é seu, para sempre.
Por um instante, analisou o que escrevera. Não era o bastante, mas teria de servir. Não tinha as palavras certas, e também não tinha tempo.
Com muito cuidado, secou a tinta molhada com um mata-borrão e dobrou as páginas. Quase escreveu “Faile Bashere” do lado de fora, mas trocou para “Faile Aybara”. Percebeu que sequer sabia se as esposas tomavam o nome dos maridos, em Saldaea. Havia lugares onde isso não acontecia. Bem, Faile se casara com ele em Dois Rios, e teria que aturar os costumes de Dois Rios.
Deixou a carta no centro da cornija da lareira. Talvez chegasse até ela, um dia. Ajeitou a faixa nupcial vermelha por detrás da gola da camisa, para que caísse pela lapela do jeito certo. Deveria usá-la por sete dias, para que todos vissem que estava recém-casado.
— Vou tentar — disse à carta, baixinho.
Faile tentara amarrar uma faixa na barba dele. Perrin desejou que a tivesse deixado.
— Como, Lorde Perrin? — indagou Ban, ainda remexendo os pés, ansioso. — Eu não ouvi.
Aram mordia os lábios, os olhos arregalados e assustados.