Bornhald ergueu a cabeça devagar, os olhos perturbados e ao mesmo tempo meio vidrados. As mãos protegidas pelas manoplas de aço se flexionaram nas rédeas, em um movimento inconsciente.
— Você acha que a essa altura eu já não descobri que essas defesas foram erguidas sem você? Nada disso foi coisa sua, sim? Eu não vou manter meus homens aqui para ver você jogar seus próprios aldeões na boca dos Trollocs. Você vai dançar em cima da pilha de corpos quando isso tudo acabar, Criatura da Sombra? Ah, não em cima dos nossos! Pretendo viver por tempo suficiente para ver você ser levado à justiça!
Perrin deu um tapinha no pescoço de Galope, tentando acalmar o garanhão. Precisava daqueles homens.
— Vocês querem me levar? Muito bem. Quando isso tudo acabar, quando os Trollocs estiverem derrotados, não vou resistir se vocês tentarem me prender.
— Não! — gritaram Ban e Tell, ao mesmo tempo.
Atrás deles, ergueu-se um estrondo de protestos. Aram encarou Perrin, perturbado.
— Uma promessa vazia — retrucou Bornhald, encarando-o com desprezo. — Você quer que todo mundo morra aqui, exceto você mesmo!
— E você nunca vai saber se fugir, não é mesmo? — Perrin assumiu um tom áspero e desdenhoso. — Vou manter a minha promessa, mas, se você for embora, pode ser que nunca volte a me encontrar. Vá, se quiser! Fuja e tente esquecer o que está acontecendo aqui! Toda aquela conversa de proteger o povo dos Trollocs… Quantos morreram nas mãos dos Trollocs, depois que você chegou? A minha família não foi a primeira, e com certeza não será a última. Fuja! Ou fique, se for capaz de lembrar que é homem. Se precisar encontrar coragem, olhe só para essas mulheres, Bornhald. Qualquer uma delas tem mais coragem do que todos vocês, Mantos-brancos, juntos!
Bornhald tremia como se cada palavra fosse um golpe. Perrin achou que o homem fosse desabar da sela. Ereto e cambaleante, o Manto-branco o encarou.
— Eu vou ficar — anunciou, com a voz rouca.
— Mas, meu Lorde Bornhald… — protestou Byar.
— Uma morte honrada! — rosnou Bornhald. — Se temos que morrer aqui, teremos uma morte honrada! — Ele virou a cabeça com violência de volta para Perrin, com saliva nos lábios. — Nós vamos ficar. Mas, no fim, eu verei você morto, Criatura da Sombra! Pela minha família, pelo meu pai, eu… verei… você… morto!
Ele puxou o cavalo bruscamente e retornou a meio-galope até a fileira de Mantos-brancos. Byar arreganhou os dentes para Perrin, em um rosnado silencioso, antes de seguir seu comandante.
— Você pretende manter essa promessa? — perguntou Aram. — Você não pode.
— Preciso ver como estão todos — comentou Perrin. Não havia muita chance de que vivesse o bastante para manter a promessa. — Não temos muito tempo.
Ele cravou as botas nos flancos de Galope, e o cavalo deu um pinote para a frente, em direção ao lado oeste da aldeia.
Atrás das estacas pontudas voltadas para a Floresta do Oeste, homens permaneciam agachados com suas lanças, alabardas e armas de haste confeccionadas por Haral Luhhan, que também estava lá, com o colete de ferreiro e uma lâmina de foice presa à ponta de uma vara de oito pés de comprimento. Atrás deles estavam os homens com arcos, em fileiras entremeadas por quatro catapultas. Abell Cauthon caminhava devagar por entre elas, falando com cada um dos homens.
Perrin freou as rédeas ao lado de Abell.
— A notícia é que eles estão vindo do norte e do sul — murmurou — mas fique de olho.
— Vamos vigiar. E estou pronto para mandar metade dos meus homens para onde for preciso. Eles vão ver que o povo de Dois Rios não é presa fácil.
O sorriso escancarado de Abell era muito parecido com o do filho.
Para o constrangimento de Perrin, os homens urraram um comprimento ressonante enquanto ele avançava, com os Companheiros e o estandarte logo atrás.
— Olhos-Dourados! Olhos-Dourados! — gritavam.
Volta e meia surgia um “Lorde Perrin!” em meio à algazarra. Sabia que deveria ter batido o pé mais forte no início.
Tam assumira a liderança ao sul, com o rosto mais sombrio que o de Abell, avançando quase como um Guardião, a mão apoiada no punho da espada. Aquela graça mortal e voraz parecia estranha no fazendeiro corpulento e grisalho. Ainda assim, suas palavras para Perrin não foram tão diferentes das de Abell.
— Nós de Dois Rios somos muito mais fortes do que a maioria pensa — murmurou. — Não se preocupe, hoje seremos motivo de muito orgulho.
Alanna estava parada ao lado de uma das seis catapultas erguidas naquela área, toda preocupada com uma grande pedra que era içada para dentro de um dos suportes na ponta de uma das vigas robustas. Ihvon parou o cavalo perto dela, com a capa furta-cor de Guardião, esguio feito uma lâmina de aço e alerta como um gavião. Não havia dúvida de que ele escolhera seu lugar — onde quer que Alanna estivesse — e sua luta — preservar a vida dela, independentemente do que acontecesse. O homem mal olhou para Perrin. Mas, quando ele passou, a Aes Sedai fez uma pausa, as mãos suspensas sobre a pedra, os olhos a acompanhá-lo. O rapaz quase pôde senti-la avaliando-o, medindo-o, julgando-o. Os urros também o acompanhavam ali.
No ponto onde a cerca de estacas ficava à frente das poucas casas a leste da estalagem Fonte de Vinho, Jon Thane e Samel Crawe dividiam o comando. Perrin disse aos dois o mesmo que dissera a Abell, e recebeu a mesma resposta. Jon, vestido em uma cota de malha com buracos em diversos pontos, vira a fumaça de seu moinho incendiado, e Samel, com cara de cavalo e nariz comprido, tinha certeza de ter visto a fumaça de sua fazenda. Nenhum dos dois esperava que o dia fosse fácil, mas ambos estavam cobertos de um manto rígido de determinação.
Perrin decidiu que sua luta seria no norte. Dedilhando a fita que pendia de uma lapela, espiou na direção de Colina da Vigília, na direção que Faile seguira, e se perguntou por que teria escolhido o lado norte. Voe livre, Faile. Voe livre, meu coração. Imaginou que aquela área seria tão apropriada para morrer quanto qualquer outra.
Bran supostamente assumira a liderança daquelas bandas, com seu elmo e colete com discos de metal cerzidos, mas parou de conferir os homens ao longo da cerca para dispensar uma mesura a Perrin, a maior que sua circunferência corporal permitia. Gaul e Chiad permaneciam a postos, as cabeças envoltas nas shoufas, os rostos encobertos até os olhos por detrás dos véus negros. Lado a lado, percebeu Perrin. Fosse lá o que tivesse se passado entre os dois, parecia se sobrepor à rixa de sangue dos clãs. Loial portava um par de machados de madeira, pequenos se comparados às suas mãos imensas. As orelhas peludas se inclinavam para a frente, cheias de fúria, e o rosto largo estava fechado.
Você acha que eu fugiria?, perguntara ele, quando Perrin sugerira que o Ogier poderia escapulir no meio da noite atrás de Faile. As orelhas haviam caído, cheias de pesar e cansaço. Eu vim com você, Perrin, e vou ficar até você ir embora. Então soltara uma risada repentina, um som grave e retumbante que quase sacudira as louças. Talvez alguém até conte uma história a meu respeito, um dia. Não é frequente acontecer com meu povo, mas acho que pode haver um herói Ogier. Uma piada, Perrin! Eu fiz uma piada! Ria! Venha, vamos contar umas piadas, rir um pouco e pensar em Faile voando livre.
— Não é piada, Loial — murmurou Perrin, enquanto cavalgava entre as fileiras de homens, tentando não escutar a algazarra. — Você é um herói, queira ou não.
O Ogier abriu um sorriso largo e tenso antes de deitar os olhos outra vez no chão limpo em frente à cerca. Pedaços de pau rajados de branco marcavam intervalos de cem a quinhentas passadas. Para além disso, havia campos forrados de tabaco e cevada, a maioria esmagada por ataques anteriores, além de sebes, cercas baixas de pedra e bosques de folhas-de-couro, pinheiros e carvalhos.