Rand percebeu vagamente a imagem de uma grande estátua, semienterrada na distante Cairhien, e a imensa esfera de cristal na mão da figura, reluzindo sob o sol, pulsando com o Poder Único. E o Poder nele explodiu, feito as tempestades de todos os mares do mundo. Com aquilo, ele decerto seria capaz de qualquer coisa; e decerto poderia inclusive ter Curado aquela criança morta. A mácula também se avolumou, envolvendo cada partícula de seu corpo, dominando cada fresta em sua alma. Ele queria urrar; queria explodir. No entanto, controlava apenas metade do que aquele sa’angreal era capaz; a outra metade preenchia Asmodean. Eles lutaram, avançando e recuando, tropeçando e caindo em vários ter’angreal espalhados e destruídos. Nenhum dos dois ousava desprender um dedo sequer da estatueta, temendo que o outro fosse tomá-la para si. No entanto, enquanto rolavam sem parar, chocando-se contra um batente de porta vermelho que de alguma forma ainda se mantinha de pé, depois contra uma estátua de cristal caída, porém intocada, de uma mulher nua segurando uma criança ao seio, enquanto lutavam pela posse do ter’angreal, a batalha era disputada em outro nível.
Rand era atacado por martelos de Poder grandes o suficiente para demolir montanhas e por espadas capazes de perfurar o centro da terra; torqueses invisíveis tentavam apartar sua mente de seu corpo, tentavam lacerar sua alma. Cada fragmento de Poder que ele conseguia evocar ia para rechaçar aqueles ataques. Qualquer investida poderia destruí-lo como se ele jamais tivesse existido; não havia dúvida. Para onde iam, ele não sabia ao certo. O chão ricocheteava sob os dois, sacudindo-os em meio à luta, um emaranhado de músculos rígidos e contorcidos. Ele tinha vaga consciência dos poderosos estrondos, dos mil zunidos lamentosos, como uma melodia estranha. As colunas de vidro trêmulas, vibrantes. N ão conseguia se importar com elas.
Todas aquelas noites sem dormir começaram a fazer efeito nele, e também a corrida que empreendera. Rand estava cansado, e se tinha consciência disso mesmo dentro do Vazio, era porque estava perto da exaustão. Sacudido pelo tremor da terra, ele percebeu que já não estava tentando arrancar o ter’angreal de Asmodean, apenas o segurava. Logo sua força iria embora. Mesmo que conseguisse manter o punho cerrado na figura de pedra, teria de largar saidin ou seria arrebatado por sua torrente, destruído tão certamente quanto seria por Asmodean. Ele não podia puxar outro fio do ter’angreal; ele e Asmodean estavam em perfeito equilíbrio, cada um com metade do que o grande sa’angreal em Cairhien era capaz de dispender. Asmodean arfava na face de Rand, rosnando; o suor pingava da testa do Abandonado e escorria pelo rosto. O homem também estava cansado. Mas tanto quanto ele?
A terra descontrolada ergueu Rand por um instante, e, com a mesma rapidez, girou Asmodean para o alto, mas naquele breve instante Rand sentiu uma pressão entre os dois. A ponta da espada do homenzinho redondo, ainda enfiado no cós de sua calça. Uma coisa insignificante perto do imenso Poder que eles manejavam. Uma xícara d’água comparada a um vasto rio, a um oceano. Ele sequer sabia se podia usar o objeto enquanto estivesse ligado ao grandioso sa’angreal. E se pudesse? Asmodean arreganhou os dentes. Não era uma careta, mas um esgar; o homem achava que estava vencendo. Talvez estivesse. Os dedos de Rand tremiam, fraquejando em torno do ter’angreal; tudo o que ele conseguia era agarrar-se a saidin, mesmo preso como estava ao imenso sa’angreal.
Ele não tinha visto aquelas coisas estranhas em torno de Asmodean, feito fios de aço negro, desde que deixara o local escuro, porém mesmo no Vazio era capaz de visualizá-las, de envolver o Abandonado nelas mentalmente. Tam lhe ensinara que o Vazio era um auxílio à arte do arco e flecha, uma forma de unir-se ao arco, à flecha, ao alvo. Ele se tornou um só com aqueles fios negros imaginários. Mal viu a cara franzida de Asmodean. O homem devia estar se perguntando por que o rosto de Rand havia ficado tão sereno; a calma sempre dominava o instante antes de a flecha ser solta. Ele tocou o pequenino angreal no cós da calça, e mais Poder fluiu para ele. Não perdeu tempo em se entusiasmar; era um fluxo tão pequeno junto ao que ele já tinha dentro de si, mas era o fluxo final. Iria requerer sua força final. Ele forjou uma espécie de espada com o Poder, uma espada de Luz, e golpeou; unido à espada, unido aos fios imaginários.
Asmodean arregalou os olhos e emitiu um uivo profundo de pavor; feito um gongo atingido, o Abandonado estremeceu. Por um instante, pareceu dividir-se em dois corpos, apartados e trêmulos; em seguida os dois se uniram outra vez. Ele desabou de costas, os braços estendidos dentro do casaco vermelho, já imundo e esfarrapado, o peito ofegante; seus olhos encaravam o nada, aparentemente perdidos.
Quando ele desabou, Rand perdeu a posse de saidin, e o Poder o abandonou. Ele mal teve força suficiente para apertar o ter’angreal contra o peito e rolar para longe de Asmodean. Ao levantar-se, parecia carregar o peso de uma montanha. Ele se aninhou em torno da figura com a esfera de cristal.
A terra parou de se mover. As colunas de vidro ainda estavam de pé — ele sentiu-se grato por isso; destruí-las teria sido como obliterar a história dos Aiel — mas Avendesora, que vivera por três mil anos em verdade e lenda, ardia em chamas feito uma tocha. Quanto ao restante de Rhuidean…
Na esplanada, tudo parecia ter sido revirado por um gigante ensandecido. Metade dos imensos palácios e torres eram só pilhas de entulho, algumas adentrando a praça; gigantescas colunas tombadas desfiguravam as outras, havia paredes desmoronadas, e buracos abertos onde antes havia imensas janelas de vidro colorido. Uma rachadura percorria um caminho por toda a cidade, uma fenda no chão de cinquenta passadas de largura. A destruição não terminava ali. O domo de névoa que encobrira Rhuidean por tantos séculos estava se dissipando; seu interior já não cintilava, e a luz rígida do sol entrava pelas novas e imensas frestas. Logo adiante, o cume de Chaendaer parecia diferente, mais baixo. Do outro lado do vale, algumas das montanhas sem dúvida estavam mais baixas. Onde antes existia uma delas, na ponta mais a norte do vale, se estirava um leque de pedras e poeira.
Eu destruo. Eu sempre destruo! Luz, isso não vai acabar nunca?
Asmodean rolou de barriga para baixo e se ergueu, de quatro. Seus olhos encontraram Rand e o ter’angreal, e ele ameaçou engatinhar na direção deles.
Rand não podia canalizar nem uma faísca, mas havia aprendido a lutar antes de ter o primeiro pesadelo com a canalização. Ergueu o punho.
— Nem ouse pensar nisso.
O Abandonado parou, o corpo tremendo, cansado. Seu rosto desabou, mas o desespero e o desejo guerreavam dentro dele; ódio e medo cintilavam em seus olhos.
— Eu gosto muito de ver homens lutando, mas vocês dois não conseguem nem ficar de pé. — Lanfear posicionou-se à vista de Rand, avaliando a destruição. — Fizeram o trabalho completo. Conseguem sentir os vestígios? Este lugar foi blindado, de alguma forma. Vocês não deixaram nem o suficiente para eu poder dizer como. — Os olhos escuros da mulher de súbito se iluminaram, e ela ajoelhou-se diante de Rand, encarando o que ele segurava. — Então era disso que ele estava atrás. Pensei que estavam todos destruídos. Só resta a metade do único que eu já vi; ótima armadilha para uma Aes Sedai desatenta. — Ela estendeu a mão, e ele agarrou o ter’angreal com mais força. Ela sorria, mas um sorriso falso. — Fique com ele, claro. Para mim, é só uma estatueta. — Ela se levantou e sacudiu a poeira das saias, embora não fosse necessário. Quando percebeu que ele a observava, a mulher parou de perscrutar a esplanada tomada de entulho e escancarou ainda mais o sorriso. — O que você usou foi um dos dois sa’angreal sobre os quais lhe falei. Sentiu a imensidão dele? Sempre imaginei como deve ser. — Ela parecia ignorar a avidez da própria voz. — Com esses dois juntos, podemos destituir o Grande Senhor das Trevas em pessoa. Nós podemos, Lews Therin! Juntos.