— Estou indo. — Thom foi mancando até a porta, irritado. Já arrancara oohs e aahs de gente incapaz de acreditar, mesmo ao assisti-lo, que um velho esquelético de cabelos brancos pudesse plantar bananeiras e dar cambalhotas e giros com a rapidez e agilidade de um garoto. A perna que o fazia mancar pusera fim naquilo tudo, e ele odiava o modo como andava. A perna doía ainda mais quando estava cansado. Ele abriu a porta com um solavanco e piscou, surpreso. — Ora. Entre, Mat. Pensei que estava dando duro para esvaziar as bolsas dos fidalgotes.
— Eles não querem mais jogar por hoje — respondeu o rapaz, azedo, desabando no banquinho de três pés que fazia as vezes de segunda cadeira.
O casaco dele estava desabotoado, e os cabelos, desgrenhados. Os olhos castanhos analisavam o ambiente, sem se deter em qualquer ponto específico, mas o brilho no olhar usual, que sugeria que o rapaz achava graça em algo que mais ninguém percebera, não estava lá.
Thom franziu a testa, pensativo. Mat nunca cruzava sua porta sem fazer um comentário espirituoso sobre o quarto decadente. O rapaz aceitara a explicação de Thom de que dormir perto dos alojamentos dos serviçais ajudaria o povo a esquecer que ele chegara ali à sombra das Aes Sedai, mas quase nunca deixava uma piadinha passar. Se tivesse se dado conta de que o quarto também garantia que ninguém pensasse que Thom tinha qualquer ligação com o Dragão Renascido, Mat, sendo quem era, teria considerado o pedido bastante razoável. Haviam bastado duas frases de Thom, proferidas rapidamente em um instante em que ninguém estava olhando, para que Rand percebesse o verdadeiro motivo. Todos davam ouvidos a um menestrel, todos o observavam, mas ninguém realmente reparava nele ou lembrava com quem ele conversava, desde que fosse apenas um menestrel com a função de entreter camponeses, serviçais e, talvez, divertir as moças. Era assim que os tairenos pensavam. Afinal de contas, não era como se ele fosse um bardo.
O que estaria incomodando o rapaz para levá-lo até ali àquela hora? Devia ser alguma moça, já com idade para ter juízo, que tivesse se deixado conquistar pelo sorriso malicioso de Mat. Mesmo assim, até que o rapaz dissesse o contrário, Thom fingiria que aquela era uma das visitas corriqueiras.
— Vou pegar o tabuleiro de pedras. Está tarde, mas temos tempo para um jogo. — Não resistiu em acrescentar: — Quer apostar alguma coisa? — Não jogaria dados com Mat nem por um cobre, mas pedras era outra história. Parecia haver muita ordem e padrão nas pedras para a estranha sorte do rapaz.
— O quê? Ah. Não. Está muito tarde para jogar… Thom… é… aconteceu…? Aconteceu alguma coisa por aqui, hoje?
Apoiando o tabuleiro de pedras em um dos pés da mesa, Thom pescou a bolsa de tabaco e o cachimbo comprido na bagunça sobre o tampo.
— Feito o quê? — perguntou, enchendo o fornilho.
Teve tempo de meter um pedaço de papel torcido na chama de uma das velas, acender o cachimbo e apagar o fogo do papel antes que Mat respondesse.
— Feito Rand estar enlouquecendo, é isso. Não… se tivesse acontecido, você não precisaria perguntar.
Um arrepio fez Thom remexer os ombros, mas ele baforou um filete de fumaça cinza-azulada com toda a calma e sentou-se na cadeira, esticando a perna manca à frente do corpo.
— O que foi que houve?
Mat respirou fundo, então despejou tudo de uma vez só:
— As cartas tentaram me matar. A Amyrlin, e o Grão-lorde, e… Não foi um sonho, Thom. É por isso que aquelas gralhas emplumadinhas não quiseram mais jogar. Ficaram com medo de acontecer de novo. Thom, estou pensando em ir embora de Tear.
O menestrel sentiu um arrepio passar por suas costas, quase como se urtigas-vespanegra tivessem sido apertadas contra a pele. Por que ele mesmo ainda não havia saído de Tear? Seria a coisa mais sábia a fazer. Havia centenas de aldeias por aí à espera de um menestrel para entreter e maravilhar a todos. E cada aldeia tinha uma ou duas estalagens cheias de vinho para afogar as mágoas. Porém, se fizesse isso, deixaria Rand sem ninguém além de Moiraine para impedir que os Grão-lordes o encurralassem e, quem sabe, cortassem sua garganta. A mulher conseguiria dar conta do recado, é claro. Por meios diferentes dos dele. Pelo menos era o que Thom achava. Era cairhiena, e decerto sua habilidade para o Jogo das Casas viera junto com o leite da mãe. E, enquanto o ajudava, amarraria mais um cordel em Rand, a ser puxado pela Torre Branca. Prenderia o rapaz à rede Aes Sedai com tanta força que ele jamais escaparia. Mas, se o garoto já estava enlouquecendo…
Idiota, Thom disse a si mesmo. Um completo idiota por se envolver naquela história por causa de algo que acontecera quinze anos antes. Ficar não mudaria nada, o que estava feito estava feito. Precisava ver Rand, cara a cara, independente do que dissera sobre manterem distância. Talvez ninguém achasse muito esquisito se um menestrel pedisse para cantar para o Lorde Dragão, uma canção composta especialmente para a ocasião. Ele conhecia uma melodia de Kandor, obscura, e com razão, que exaltava algum lorde sem nome por sua grandeza e coragem, com termos pomposos que não revelavam atos ou locais. Devia ter sido encomendada por algum lorde sem qualquer feito digno de menção. Bem, serviria a ele, agora. A não ser que Moiraine decidisse que era esquisito. Isso seria tão ruim quanto chamar a atenção dos Grão-lordes. Eu sou um idiota! Devia sair daqui hoje mesmo!
Estava fervilhando por dentro, e o estômago revirava, ácido, mas passara anos aprendendo a manter a expressão impassível antes mesmo de chegar a vestir um manto de menestrel. Soprou três anéis de fumaça, um dentro do outro, e disse:
— Você está pensando em ir embora de Tear desde o dia em que pôs os pés na Pedra.
Empoleirado na ponta do banquinho, Mat disparou um olhar irritado.
— E pretendo. De verdade. Por que não vem comigo, Thom? Tem cidades onde o povo pensa que o Dragão Renascido ainda não chegou nem a dar o primeiro suspiro, lugares onde há anos ninguém dá a mínima para essas porcarias de Profecias do maldito Dragão, se é que algum dia isso aconteceu. Lugares onde o povo pensa que o Tenebroso é uma história que ouvem das vovozinhas, que os Trollocs são contos loucos de viajantes, que os Myrddraal cavalgam as sombras para assustar as criancinhas. Você poderia tocar sua harpa e contar histórias, e eu poderia jogar dados. Viveríamos como lordes, viajando o quanto quiséssemos, ficando onde desejássemos, sem ninguém tentando nos matar.
Aquilo o atingiu em cheio. Bem, ele era um idiota, de fato. Só precisava tirar o melhor proveito disso.
— Se quer mesmo ir, por que é que ainda não foi?
— Moiraine está me vigiando — respondeu Mat, azedo. — E, quando não está, manda alguém me vigiar.
— Eu sei. Aes Sedai não gostam de soltar ninguém em quem conseguiram pôr as mãos. — Era mais do que isso, tinha certeza, sem dúvida mais do que era de conhecimento geral, mas Mat negava tudo, e os outros que sabiam também não falavam, considerando que alguém além de Moiraine soubesse. Não importava. Ele gostava de Mat. De certo modo, tinha uma dívida com o rapaz, porém o jovem andoriano e seus problemas eram um teatrinho de fantoches para crianças, em comparação com Rand. — Mas não acredito que ela mande mesmo alguém vigiar você o tempo todo.
— É quase isso. Sempre pergunta aos outros onde estou e o que estou fazendo. Fico sabendo dessas coisas. Sabe de alguém que não conte a uma Aes Sedai o que ela deseja saber? Eu não. É quase o mesmo que ser vigiado.
— Se você se esforçar, pode evitar os olhares. Nunca conheci alguém com tanto talento para andar sorrateiro. Isso foi um elogio.