— Sammael está em Illian — prosseguiu a Aes Sedai. — Os tairenos estão sempre tão preparados para a guerra com Illian quanto o inverso. Os dois povos já se enfrentam de forma intermitente há mil anos, e discutem suas chances de vencer como outros homens conversam sobre o próximo festival. Duvido até que saber da presença de Sammael pudesse mudar isso, não com o Dragão Renascido para conduzi-los. Tear seguirá Rand ansiosamente nesta empreitada, e, se ele derrotar Sammael…
— Luz! — exclamou Nynaeve. — Você não está querendo que ele comece uma simples guerra, quer que ele vá atrás de um dos Abandonados! Não me admira que Rand esteja sendo teimoso. Para um homem, ele não é bobo.
— Ele precisa enfrentar o Tenebroso no fim — lembrou-a Moiraine, muito calma. — Você acha mesmo que ele pode evitar os Abandonados? Quanto à guerra, já há guerras suficientes sem ele, e cada uma mais inútil que a outra.
— Toda guerra é inútil — começou Elayne, e hesitou de repente, ao se encher de compreensão.
Tristeza e arrependimento também estamparam seu rosto, mas sem dúvida compreensão. A mãe sempre lhe ensinara sobre como uma nação era conduzida, além de como era governada, duas coisas muito diferentes, porém ambas necessárias. E, às vezes, certas coisas muito desagradáveis precisavam ser feitas pelo bem de ambas, e o preço de não fazê-las era ainda pior.
Moiraine lhe lançou um olhar complacente.
— Nem sempre é agradável, não é? Suponho que, quando você quase não tinha idade para compreender, sua mãe tenha começado a ensiná-la a respeito do que teria de governar depois dela. — Moiraine crescera no Palácio Real em Cairhien. Não estava destinada a reinar, mas fazia parte da família real e sem dúvida ouvira os mesmos ensinamentos. — Ainda assim, às vezes parece que seria melhor ficar na ignorância, ser uma fazendeira que não conhece nada além das fronteiras de suas terras.
— Mais charadas? — indagou Nynaeve, com desdém. — A guerra era algo que eu costumava ouvir de mascates, uma coisa muito distante, que eu não entendia bem. Agora, sei o que é. Homens matando homens. Homens se comportando feito animais, reduzidos a animais. Aldeias incendiadas, fazendas e campos incendiados. Fome, doença e morte, tanto para inocentes quanto para culpados. O que é que torna essa sua guerra melhor, Moiraine? O que a torna mais limpa?
— Elayne? — disse Moiraine, baixinho.
Ela balançou a cabeça — não queria ser a pessoa a explicar aquilo — mas não sabia dizer se sua mãe, sentada no Trono do Leão, teria se calado diante do olhar sombrio e persuasivo de Moiraine.
— A guerra virá quer Rand a inicie ou não — começou, relutante. Egwene deu um passo atrás com um olhar de descrença tão penetrante quanto o de Nynaeve. Quando Elayne prosseguiu, a incredulidade foi esvanecendo dos rostos das duas outras mulheres. — Os Abandonados não vão ficar parados esperando. Sammael talvez não tenha sido o único a agarrar as rédeas de uma nação, talvez tenha sido apenas o único de que sabemos. Algum dia eles virão atrás de Rand, talvez em pessoa, mas sem dúvida com exércitos sob seu comando. E as nações livres dos Abandonados? Quantos vão clamar glória ao estandarte do Dragão e acompanhá-lo a Tarmon Gai’don, e quantos vão convencer a si mesmos de que a queda da Pedra é uma mentira, de que Rand é apenas mais um falso Dragão que deve ser abatido, um falso Dragão talvez forte o bastante para ameaçá-los, caso não o ataquem primeiro? De um jeito ou de outro, a guerra virá. — Ela parou de repente. Ainda havia mais, porém não podia, nem iria, contar a outra parte.
Moiraine não foi tão reticente.
— Muito bom — disse, assentindo — mas incompleto. O olhar que lançou a Elayne revelava que ela sabia que a menina deixara aquilo de fora de propósito. De mãos cruzadas placidamente sobre a cintura, dirigiu-se a Nynaeve e Egwene: — Nada torna esta guerra melhor ou mais limpa. Apenas isso vai cimentar os tairenos a ele, e os illianenses acabarão seguindo-o, assim como os tairenos fazem agora. Como não o fariam, depois que o estandarte do Dragão tremeluzir por sobre Illian? Apenas a notícia da vitória poderá decidir as guerras em Tarabon e Arad Doman a seu favor. Guerras que terminarão por vocês.
“Em um só golpe, ele se tornará tão forte comparado a homens e espadas que apenas uma coalizão de cada nação que restar daqui até a Praga poderá derrotá-lo, e, com o mesmo golpe, mostrará aos Abandonados que não é uma perdiz gorda e claudicante que pode ser aprisionada em uma rede. Isso os deixará cautelosos e dará a ele tempo para aprender a usar a própria força. Ele precisa fazer o primeiro movimento, ser o martelo, não o prego. — A Aes Sedai fez uma leve careta, maculando a calma com um traço da irritação anterior. — Ele precisa fazer o primeiro movimento. E o que é que ele faz? Ele lê. Lê e se afunda cada vez mais.
Nynaeve parecia abalada, como se fosse capaz de enxergar todas as batalhas e mortes. Os olhos negros de Egwene estavam arregalados, cheios de uma compreensão horrorizada. Os rostos das outras fizeram Elayne estremecer. Uma delas vira Rand crescer, a outra crescera com ele. Agora o viam começando guerras. Não o Dragão Renascido, mas Rand al’Thor.
A luta interior que Egwene travava era visível. Ela se agarrou à menor parte, à mais irrelevante de todas as que Moiraine dissera.
— Como é que ler pode causar problemas para ele?
— Ele decidiu desvendar sozinho as Profecias do Dragão. — O rosto de Moiraine permanecia frio e impassível, mas de súbito ela pareceu quase tão cansada quanto Elayne. — Elas podem ser proibidas em Tear, mas o bibliotecário-chefe tinha nove traduções diferentes trancadas em um baú. Rand agora está com todas. Eu indiquei o verso que se aplica nessa situação, e ele o recitou para mim, de uma antiga tradução kandoriana. “Do poder da Sombra fez-se carne humana, despertada em caos, contenda e ruína. O Renascido, marcado e sangrento, baila a espada em bruma e sonhos, acorrenta à sua vontade os Jurados pelas Sombras, da cidade, perdida e abandonada, reconduz as lanças à guerra, quebra as lanças e os faz enxergar a verdade há muito oculta no velho sonho.” Ela fez uma careta.
— Pode se aplicar a isso tanto quanto a qualquer outra coisa. Illian, sob as ordens de Sammael, sem dúvida é uma cidade abandonada. Levar as lanças tairenas à guerra, acorrentar Sammael, e pronto, ele realizou o verso. O velho sonho do Dragão Renascido. Mas não consegue enxergar. Tem até uma cópia na Língua Antiga, como se entendesse duas palavras. Está perseguindo sombras, e Sammael, ou Rahvin, ou Lanfear podem agarrá-lo pela garganta antes que eu consiga convencê-lo desse erro.
— Ele está desesperado. — O tom suave de Nynaeve não era por Moiraine, Elayne tinha certeza, mas por Rand. — Desesperado, tentando encontrar o caminho.
— Eu também estou desesperada — retrucou Moiraine, com firmeza. — Dediquei a vida a encontrá-lo, não vou permitir que ele fracasse, se eu puder evitar. Estou quase desesperada a ponto de… — Ela parou, apertando os lábios. — Basta dizer que farei o que for preciso.
— Não basta — intrometeu-se Egwene bruscamente. — O que é que você vai fazer?
— Vocês têm outros assuntos com que se preocupar — retrucou a Aes Sedai. — A Ajah Negra…
— Não! — A voz de Elayne era cortante e autoritária, e suas juntas estavam brancas onde agarravam as macias saias azuis. — Você guarda muitos segredos, Moiraine, mas conte este. O que pretende fazer com ele?
O lampejo de uma imagem tomou sua mente: ela agitando Moiraine e arrancando a verdade à força, se fosse preciso.
— Fazer com ele? Nada. Ah, muito bem. Não há razão para não saberem. Vocês viram o que os tairenos chamam de A Grande Posse?
Estranhamente, para um povo que temia tanto o Poder, os tairenos guardavam na Pedra uma coleção de objetos relacionados ao Poder quase tão grande quanto a da Torre Branca. Elayne, por exemplo, pensava que era porque haviam sido forçados a guardar Callandor por muito tempo, querendo ou não. Até a Espada Que Não É Espada poderia parecer menos importante se fosse apenas um objeto entre tantos outros. Porém, os tairenos jamais se viram capazes de exibir os troféus. A Grande Posse era mantida em uma série de aposentos sujos e abarrotados, enterrados em profundezas abaixo dos calabouços. Quando Elayne os viu pela primeira vez, os cadeados nas portas estavam havia muito enferrujados, isso onde as próprias portas não haviam simplesmente desabado de tão podres.