— Passamos um dia inteiro lá embaixo — disse Nynaeve. — Para ver se Liandrin e suas amigas tinham levado alguma coisa. Acho que não. Estava tudo soterrado de poeira e mofo. Serão necessários dez barcos para transportar tudo aquilo para a Torre. Talvez lá possam compreender o sentido de algumas daquelas coisas, eu sem dúvida não consegui. — A tentação de provocar Moiraine era tão grande que ela não resistiu, pois acrescentou: — Você saberia disso tudo se tivesse nos concedido um pouco mais do seu tempo.
Moiraine não reparou. Parecia olhar para dentro de si, examinando os próprios pensamentos, e disse, quase falando sozinha:
— A Posse guarda um ter’angreal em particular, parece um batente de porta de pedra vermelha, levemente torto a olho nu. Se eu não conseguir fazer com que ele tome alguma decisão, talvez precise fazê-lo entrar ali.
A pequena pedra azul em sua testa tremulava, cintilante. Ela não parecia ansiosa para dar esse passo.
À menção do ter’angreal, Egwene instintivamente tocou o corpete do vestido. Ela mesma costurara ali um pequeno bolso para esconder o anel de pedra, agora guardado nele. Aquele anel era um ter’angreal, poderoso ainda que pequeno, e Elayne era uma das únicas três mulheres que sabiam que ela o tinha. Moiraine não era uma delas.
Eram coisas estranhas, os ter’angreal, fragmentos da Era das Lendas, assim como os angreal e os sa’angreal, ainda que mais numerosos. Os ter’angreal utilizavam o Poder Único em vez de ampliá-lo. Cada um parecia servir a uma única função. Embora alguns ainda fossem usados, ninguém sabia ao certo se de fato serviam aos fins para os quais haviam sido confeccionados. O Bastão dos Juramentos, com o qual uma mulher fazia os Três Juramentos ao ser elevada a Aes Sedai, era um ter’angreal que gravava os juramentos em seu sangue e carne. O último teste pelo qual passava uma noviça para ser elevada a Aceita ocorria dentro de outro ter’angreal, que deslindava seus medos mais profundos e os fazia parecerem reais — ou talvez a levasse a um lugar onde seus medos eram mesmo reais. Coisas estranhas podiam acontecer com um ter’angreal. Aes Sedai já haviam sido exauridas, mortas ou simplesmente desaparecido ao estudá-los. E ao usá-los.
— Eu vi aquele batente — disse Elayne. — No último quarto, no fim do corredor. Meu lampião apagou, e caí três vezes antes de conseguir chegar até a porta. — Um rubor de constrangimento tomou seu rosto. — Eu estava com medo de canalizar ali, mesmo que fosse para reacender o fogo. Acho que muito daquilo parece lixo… parece que os tairenos pegaram quaisquer objetos que alguém achou que tivessem relação com o Poder, mas pensei que, se canalizasse, poderia transferir poder por acidente a algo que não fosse bobagem, e sabe lá o que poderia ter acontecido.
— E se você tivesse tropeçado no escuro e entrado pelo batente torto? — perguntou Moiraine, com uma cara irritada. — Para isso não é preciso canalizar, apenas adentrá-lo.
— Com que propósito? — perguntou Nynaeve.
— Obter respostas. Três respostas, cada uma verdadeira, sobre o passado, o presente ou o futuro.
O primeiro pensamento de Elayne foi o conto infantil, Bili Sob a Colina, mas só por causa das três respostas. Um segundo pensamento ocorreu em seguida, e não apenas a ela. Enquanto Nynaeve e Egwene ainda estavam abrindo as bocas, Elayne falou:
— Moiraine, isso é a solução do nosso problema. Podemos perguntar se Joiya ou Amico estão falando a verdade. Podemos perguntar onde estão Liandrin e as outras. Os nomes da Ajah Negra que ainda estão na Torre…
— Podemos perguntar que coisa é essa que é perigosa para Rand — sugeriu Egwene.
— Por que você não contou isso antes? — acrescentou Nynaeve. — Por que permitiu que ficássemos escutando as mesmas histórias, dia após dia, quando já poderíamos ter tudo solucionado?
A Aes Sedai fez uma careta e ergueu as mãos.
— Vocês três se lançam às cegas em um caminho em que Lan e cem outros Guardiões pisariam com cautela. Por que é que acham que eu ainda não adentrei? Há dias eu já poderia ter perguntado o que Rand precisava fazer para sobreviver e triunfar, como ele pode derrotar os Abandonados e o Tenebroso, como pode aprender a controlar o Poder e refrear a loucura por tempo suficiente para fazer o que for preciso. — Ela parou com as mãos na cintura, deixando as três absorverem as palavras. Nenhuma delas falou. — Existem regras — prosseguiu — e perigos. Ninguém pode adentrar mais de uma vez. Apenas uma. Uma pessoa pode fazer três perguntas, mas deve fazer todas as três e ouvir as respostas antes de se retirar. Questionamentos frívolos são punidos, ao que parece, mas também parece que o que pode ser sério para um pode ser frívolo para outro. E o mais importante: perguntas que dizem respeito à Sombra têm consequências terríveis.
“Se perguntarem sobre a Ajah Negra, podem retornar mortas ou loucas, isso se conseguirem sair. Quanto a Rand… Não tenho certeza se é possível fazer uma pergunta sobre o Dragão Renascido que não perpasse a Sombra, de alguma forma. Entendem? Às vezes há motivos para ter cautela.
— Como é que você sabe disso tudo? — inquiriu Nynaeve. Com as mãos na cintura, ela confrontou a Aes Sedai. — Os Grão-lordes sem dúvida nunca deixaram as Aes Sedai estudarem nada que há na Posse. Pela nojeira que é lá embaixo, deve fazer uns cem anos ou mais que aquilo ali não vê a luz do sol.
— Mais, imagino. — retrucou Moiraine, muito calma. — Eles pararam de colecionar há quase trezentos anos. Foi pouco antes de pararem que adquiriram esse ter’angreal. Até então, ele pertencia aos Primeiros de Mayene, que utilizavam as respostas para ajudar a manter o país fora das garras de Tear. E permitiam que as Aes Sedai o estudassem. Em segredo, é claro, Mayene jamais ousou enfurecer Tear abertamente.
— Se era tão importante para Mayene — disse Nynaeve, desconfiada —, por que é que está aqui na Pedra?
— Porque os Primeiros tomaram boas e más decisões ao tentarem manter Mayene livre de Tear. Trezentos anos atrás, os Grão-lordes planejavam construir uma frota para seguir as embarcações de Mayene e encontrar os cardumes de peixe-prego. Halvar, o então Primeiro, elevou o preço do óleo de lampião muito acima do preço das oliveiras de Tear, e, depois, para convencer os Grão-senhores de que Mayene sempre colocaria os próprios interesses atrás dos de Tear, presenteou-os com o ter’angreal. Ele já o usara, então de nada mais lhe adiantava, e era quase tão jovem quanto Berelain, aparentemente com um longo reinado à frente e muitos anos de necessidade da benevolência tairena.
— Foi um idiota — resmungou Elayne. — Minha mãe jamais cometeria um erro desses.
— Talvez não — respondeu Moiraine. — Por outro lado, Andor não é uma pequena nação acossada por outra muito maior e mais forte. Halvar foi um idiota, no fim das contas… Os Grão-lordes o assassinaram no ano seguinte. Mas sua idiotice me apresenta uma oportunidade, caso eu precise. Perigosa, mas, mesmo assim, melhor do que nada.