Ela estava a ponto de dizer tudo isso a ele, mas, antes que pudesse, Elayne o fez.
— Ninguém nos mandou. Ninguém. Viemos porque… porque nos preocupamos com você. Talvez não funcione, mas podemos tentar. Se eu… se nós nos importamos a ponto de tentar, você também pode. Será que isso é tão insignificante para você que não pode nos conceder uma hora? Por sua vida?
Ele parou de abotoar o casaco e encarou a Filha-herdeira com tanta atenção que, por um instante, Egwene achou que ele se esquecera de sua presença. Com um arrepio, ele desviou o olhar. Olhando para a conterrânea, remexeu os pés e franziu o cenho em direção à porta.
— Eu vou tentar — murmurou. — Não vai adiantar nada, mas vou tentar… O que querem que eu faça?
Egwene respirou fundo. Não pensava que seria tão fácil convencê-lo, ele sempre agia como um rochedo soterrado em lama quando decidia fincar os pés, o que fazia com bastante frequência.
— Olhe para mim — disse, abraçando saidar. Deixou que o Poder a preenchesse mais completamente do que nunca, aceitando cada gota que pudesse absorver. Era como luz derramada sobre cada partícula do corpo, como se a própria Luz preenchesse cada milímetro. A vida parecia explodir dentro dela como fogos de artifício. Jamais permitira que tanto Poder a enchesse. Ficou chocada ao perceber que não tremia, decerto não seria capaz de suportar aquela brandura tão gloriosa. Queria se deleitar, dançar e cantar, apenas deitar e deixar tudo fluir por dentro dela, por sobre ela. Forçou-se a falar. — O que está vendo? O que está sentindo? Olhe para mim, Rand!
Ele ergueu a cabeça lentamente, ainda franzindo a testa.
— Vejo você. O que é que eu deveria estar vendo? Você está tocando a fonte? Egwene, Moiraine já canalizou perto de mim umas cem vezes, e nunca vi nada. A não ser o que ela fez. Não funciona dessa forma. Até eu sei disso.
— Eu sou mais forte que Moiraine — respondeu a menina, com firmeza. — Ela estaria choramingando no chão, ou desmaiada, se tentasse controlar tanto quanto estou controlando agora. — Era verdade, embora jamais tivesse tentado avaliar a habilidade da Aes Sedai com tanto rigor.
O Poder implorava para ser usado, pulsava dentro dela com mais força que sangue bombeado pelo coração. Com essa quantidade, ela era capaz de fazer coisas que Moiraine jamais poderia imaginar. A ferida na lateral do corpo de Rand, que Moiraine nunca conseguira Curar por completo. Não entendia de Cura — era algo muito mais complexo do que qualquer coisa que já fizera — mas observara Nynaeve Curar e, talvez, com essa gigantesca concentração de Poder fluindo, pudesse ver como Curar aquela ferida. Não fazer, naturalmente, apenas ver.
Com cuidado expandiu os finos fluxos de Ar, Água e Espírito, os Poderes usados na Cura, e sentiu a antiga ferida. Um toque e ela recuou, trêmula, recolhendo a tessitura. Seu estômago se embrulhou, como se ela desejasse regurgitar cada refeição que já comera na vida. Parecia que toda a escuridão do mundo jazia ali, na lateral do corpo de Rand, todo o mal do mundo reunido em uma úlcera pustulenta coberta por um tenro tecido de cicatriz. Uma coisa como essa absorveria os fluxos de Cura feito gotas d’água em areia seca. Como ele aguentava a dor? Por que não estava chorando?
Do primeiro pensamento à ação passou-se apenas um instante. Trêmula, tentando desesperadamente esconder o tremor, ela prosseguiu, sem parar.
— Você é tão forte quanto eu. Sei disso, você tem que ser. Sinta, Rand. O que está sentindo? — Luz, o que é que pode Curar isso? Será que algo pode?
— Não sinto nada — murmurou o jovem, remexendo os pés. — Arrepios na pele. E é compreensível. Não que eu não confie em você, Egwene, mas não consigo ficar tranquilo quando uma mulher está canalizando perto de mim. Me desculpe.
Ela não se deu ao trabalho de explicar a diferença entre canalizar e apenas abraçar a Fonte Verdadeira. Havia tanto que ele não sabia, mesmo comparado ao parco conhecimento dela. Era um homem cego tentando operar um tear apenas pelo toque, sem ideia de como eram as cores, as tramas e até mesmo o próprio tear.
Com esforço, soltou saidar. E foi mesmo preciso esforço. Uma parte dela queria gritar pela perda.
— Não estou tocando a Fonte agora, Rand. — Ela deu um passo à frente e o perscrutou. — Ainda está sentindo arrepios?
— Não. Mas foi só porque você disse. — Ele deu de ombros, de repente. — Está vendo? Comecei a pensar nisso e já estou sentindo de novo.
Egwene sorriu, triunfante. Não precisou olhar para Elayne para confirmar o que já sentia, o que as duas haviam concordado em relação àquele momento.
— Você consegue sentir uma mulher abraçando a Fonte, Rand. Elayne está fazendo isso agora mesmo. — Ele apertou os olhos para a Filha-herdeira. — Não importa o que você vê ou não vê. Você sentiu. Já temos isso. Vamos ver o que mais conseguimos encontrar. Rand, abrace a Fonte. Abrace saidin. — Ela proferiu as palavras com a voz rouca. As duas também haviam concordado com isso, ela e Elayne. Era Rand, não um monstro das histórias, e as duas haviam concordado, mas, ainda assim, pedir a um homem que… O mais espantoso fora ela ter dito as palavras, para começar. — Está vendo alguma coisa? — perguntou a Elayne. — Ou sentindo alguma coisa?
Rand ainda olhava de uma para outra, ruborizado, encarando o chão. Por que estava tão desconcertado? Analisando-o fixamente, a Filha-herdeira balançou a cabeça.
— Até onde sei, ele pode simplesmente estar parado. Tem certeza de que está fazendo alguma coisa?
— Ele pode ser teimoso, mas não é burro. Pelo menos, não na maior parte do tempo.
— Bom, teimoso, burro ou qualquer coisa, eu não estou sentindo nada.
Egwene franziu o cenho para Rand.
— Você disse que faria o que mandássemos, Rand. Está fazendo? Se você sentiu algo, eu também deveria sentir, e eu… — Ela parou, dando um ganido abafado. Algo apertara seu bumbum. Os lábios de Rand se contorceram, claramente lutando contra um sorriso. — Isso — disse, ácida — não foi legal.
Ele tentou manter a expressão inocente, mas o sorriso escapou.
— Você disse que queria sentir alguma coisa, e eu pensei… — O grito súbito fez Egwene dar um salto. Ele agarrou a nádega esquerda e mancou em círculos, cheio de dor. — Sangue e cinzas, Egwene! Não precisava… — Ele baixou a voz até um murmúrio profundo e inaudível, que Egwene ficou satisfeita em não conseguir compreender.
Aproveitou a oportunidade para abanar o cachecol e pegar um pouco de ar, compartilhando um sorrisinho com Elayne. O brilho tênue ao redor da Filha-herdeira foi enfraquecendo. As duas quase soltaram risadinhas enquanto esfregavam o corpo discretamente. Aquilo ia mostrar a ele como se comportar. Estavam em um placar de cem para um, estimou Egwene.
Virando-se de volta para Rand, pôs no rosto a expressão mais austera que tinha.
— Eu teria esperado algo assim vindo de Mat. Pensei que você, pelo menos, tivesse amadurecido. Viemos aqui para ajudá-lo, se pudermos. Tente cooperar. Faça algo com o Poder, algo que não seja infantil. Talvez a gente consiga sentir.
Curvado, ele cravou o olhar nas duas.
— Faça algo — resmungou, imitando-a. — Você não tinha direito de… Eu vou ficar mancando… Vocês querem que eu faça algo?
De repente ela flutuou, e Elayne também. Ambas se encararam, os olhos arregalados, enquanto levitavam a um passo do carpete. Não havia nada a erguê-las, nenhum fluxo que Egwene pudesse ver ou sentir. Nada. Ela apertou os lábios. Rand não tinha o direito de fazer isso. Direito nenhum, e já era hora de aprender. O mesmo tipo de escudo que embarreirou o contato de Joiya com a Fonte também poderia detê-lo. As Aes Sedai o usavam nos raros homens capazes de canalizar que encontravam.