Rand tentou dizer que não, mas a língua não funcionou. Certa vez, vira dois dos Abandonados juntos, Aginor e Balthamel, os dois que se soltaram primeiro, depois de três mil anos sob o selo da prisão do Tenebroso. Um deles tinha uma aparência tão terrível que nem parecia possível ainda estar vivo. O outro escondia o rosto por trás de uma máscara, ocultava cada pedacinho de carne como se não pudesse aguentar a ideia de ver a si mesmo ou de ser visto.
O ar se encrespou em torno de Lanfear, e ela mudou. Era mais velha do que ele, sem dúvida, porém mais velha não era a palavra correta. Mais madura. Mais desenvolvida. Até mais bonita, se fosse possível. Uma flor viçosa, totalmente aberta, em comparação a um botão. Mesmo sabendo o que ela era, Rand sentiu a boca secar e a garganta enrijecer.
Os olhos escuros examinaram o rosto do jovem, cheios de confiança, mas com um toque de indagação, como se questionasse o que ele via. Qualquer que tivesse sido sua percepção, pareceu tê-la deixado satisfeita. Lanfear sorriu outra vez.
— Eu estava enterrada muito fundo, em um sono sem sonhos onde o tempo não fluía. O girar da Roda me ultrapassou. Agora você me vê pelo que sou, e tenho você em minhas mãos. — Ela passou uma unha pelo maxilar do jovem com tanta força que o fez se encolher. — O tempo de jogos e subterfúgios acabou, Lews Therin. Há muito tempo.
O estômago dele se revirou.
— Vai me matar, então? Que a luz a queime, eu…
— Matar você? — vociferou ela, incrédula. — Matar você! Eu quero possuir você, para sempre. Você era meu muito antes de aquela pálida magricela roubá-lo. Muito antes de ela sequer vê-lo. Você me amava!
— E você amava o poder!
Por um instante, Rand se sentiu atordoado. As palavras soavam verdadeiras, e sabia que eram. Mas de onde haviam vindo?
Selene — Lanfear — pareceu tão surpresa quanto ele, mas recuperou-se depressa.
— Você aprendeu bastante. Fez muitas coisas que eu não acreditaria que pudesse fazer sem auxílio. Mas ainda está tateando por um labirinto às cegas, tentando encontrar seu caminho, e pode acabar morrendo pela própria ignorância. Alguns dos outros o temem demais para esperar. Sammael, Rahvin, Moghedien. Talvez outros, mas esses sem dúvida. Eles virão atrás de você. Não tentarão fazê-lo mudar de ideia. Chegarão às escondidas, vão destruí-lo enquanto estiver dormindo. Porque o temem. Mas há alguns que poderiam ensiná-lo, mostrar o que você um dia soube. Então, ninguém ousaria se opor a você.
— Ensinar? Quer que eu deixe um dos Abandonados me ensinar? — Um dos Abandonados. Um homem. Um homem que fora Aes Sedai na Era das Lendas, que conhecia canalização, sabia como evitar armadilhas, sabia… O mesmo fora oferecido a ele antes. — Não! Mesmo que outro me oferecesse, eu recusaria, e sabe por quê? Eu me oponho a eles, e a você! Odeio tudo o que fizeram, tudo o que simbolizam. — Idiota!, pensou. Aprisionado aqui, bradando provocações feito o imbecil de alguma história que nem suspeita que possa irritar seu captor o bastante para que ele tome alguma providência. Porém, Rand não conseguia se forçar a retirar as palavras. Resoluto, seguiu adiante e piorou tudo. — Eu vou destruir vocês, se for capaz. Você, o Tenebroso e cada um dos Abandonados!
Um brilho perigoso lampejou nos olhos da mulher e desapareceu.
— Sabe por que alguns de nós temem você? Tem ideia? Porque temem que o Grande Senhor das Trevas dê a você um lugar acima do deles.
Rand surpreendeu a si mesmo ao soltar uma risada.
— Grande Senhor das Trevas? Você também não consegue dizer o nome verdadeiro? Com certeza não é por medo de atrair a atenção dele, como as pessoas decentes. Ou é?
— Seria blasfêmia — respondeu ela, simplesmente. — Eles têm razão em temer, Sammael e os outros. O Grande Senhor quer mesmo você. Deseja exaltá-lo acima de todos os outros homens. Ele me contou.
— Isso é ridículo! O Tenebroso ainda está preso em Shayol Ghul, ou eu estaria lutando Tarmon Gai’don neste exato instante. E, se ele souber que eu existo, vai querer me ver morto. Pretendo lutar com ele.
— Ah, ele sabe. O Grande Senhor sabe mais do que você pode imaginar. É possível falar com ele. Vá até Shayol Ghul, entre no Poço da Perdição, e poderá… ouvi-lo. Poderá… se banhar na presença dele. — Um brilho diferente cintilava no rosto dela. Êxtase. A mulher respirava pelos lábios entreabertos, e, por um momento, pareceu ver algo distante e magnífico. — Não há palavras para descrever a experiência. Você precisa vivenciar para saber. Precisa. — Ela o encarava outra vez, os olhos grandes, escuros e insistentes. — Ajoelhe-se diante do Grande Senhor, e ele o erguerá mais alto do que todos os outros. Ele o deixará livre para reinar como desejar, desde que você se ajoelhe diante dele apenas uma vez. Para legitimá-lo. Nada mais que isso. Ele me contou. Asmodean o ensinará a manejar o Poder sem ser morto, o ensinará o que pode fazer com ele. Aceite a minha ajuda. Podemos destruir os outros. O Grande Senhor não vai se importar. Podemos destruir todos, até Asmodean, depois que ele lhe ensinar tudo o que precisa saber. Você e eu podemos governar o mundo juntos para o Grande Senhor, para sempre. — Ela baixou a voz a um sussurro, com partes iguais de medo e ânsia. — Dois ter’angreal impressionantes foram feitos pouco antes do fim. Você pode usar um, e eu, o outro. Muito melhores do que aquela espada. O poder vai além da imaginação. Com esses, poderíamos desafiar até… Até o próprio Grande Senhor. Até mesmo o Criador!
— Você está louca — disse Rand, esgotado. — O Pai das Mentiras diz que vai me deixar livre? Eu nasci para combatê-lo. É por isso que estou aqui, para cumprir as Profecias. Eu vou lutar contra ele, e contra todos vocês, até a Última Batalha! Até meu último fôlego!
— Isso não é necessário. Uma profecia nada mais é do que o símbolo da esperança de um povo. Cumprir as Profecias só o atará a um caminho que levará a Tarmon Gai’don e à morte. Moghedien ou Sammael podem destruir seu corpo. O Grande Senhor das Trevas pode destruir sua alma. Um final derradeiro e completo. Você nunca mais renascerá, não importa o quanto a Roda do Tempo gire!
— Não!
Lanfear o analisou pelo que pareceu um longo segundo. Rand quase podia sentir a balança pesando as alternativas.
— Eu poderia levá-lo comigo — disse, por fim. — Poderia fazê-lo entregar ao Grande Senhor tudo o que deseja ou em que acredita. Existem formas de fazer isso.
Ela parou, talvez para ver se suas palavras surtiam algum efeito. O suor escorria pelas costas de Rand, mas ele mantinha o rosto impassível. Teria de fazer algo, houvesse ou não alguma chance. Uma segunda tentativa de tocar saidin se revelou inútil, encontrou outra vez a barreira invisível. Deixou os olhos vagarem, pensativo. Callandor estava atrás de si, tão distante quanto o Oceano de Aryth. A faca de cintura jazia sobre uma mesa perto da cama, junto a uma raposa inacabada que estava esculpindo. Os caroços de metal disformes zombavam dele acima da lareira, um homem em andrajos deslizando pelas portas com uma faca nas mãos, os livros espalhados por todos os cantos. Ele virou-se de volta para Lanfear, tenso.
— Você sempre foi teimoso — murmurou a Abandonada. — Não o levarei ainda. Quero que venha a mim por vontade própria. Então será meu. Qual é o problema? Está franzindo a testa.
Um homem deslizando pelas portas com uma faca. Seus olhos passaram pelo sujeito quase sem enxergá-lo. Instintivamente, empurrou Lanfear e tentou tocar a Fonte Verdadeira. O escudo que o bloqueava desapareceu assim que tocou o poder, e a espada surgiu em suas mãos como uma chama amarelo-avermelhada. Um homem avançou contra ele, a faca baixa e apontando para cima, pronto para desferir um golpe mortal. Foi difícil manter os olhos no sujeito, mas Rand deu um rodopio suave, e O Vento Sopra Sobre a Muralha agarrou a mão do homem que segurava a faca e cravou-a no coração do atacante. Por um instante, Rand encarou olhos embotados, sem vida, enquanto o coração ainda batia. Depois puxou a lâmina de volta.