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Abraçando o Poder, era capaz de sentir coisas como essa, nesse lugar. A habitual exacerbação dos sentidos ainda acontecia, é claro. Podia sentir rachaduras diminutas nos ornamentos de gesso dourado que cobriam o teto, a cinquenta pés de altura, e o polimento liso do chão de pedras brancas. Rachaduras infinitesimais, invisíveis aos olhos, espalhadas também pelas pedras do chão.

O aposento era gigantesco, talvez com duzentas passadas de comprimento e quase a metade de largura, ostentando fileiras de colunas estreitas e brancas. Aquela corda branca circulava por toda a extensão, exceto onde havia portas, com arcos de duas pontas. Mais cordas envolviam suportes de madeira polida e armários contendo outros objetos expostos. Bem em cima, sob o teto, uma padronagem elaborada de pequeninos entalhes perfurava as paredes, deixando entrar bastante luz. Ao que parecia, ela se transportara em sonho a uma Tanchico durante o dia.

“Uma grande exposição de artefatos de Eras há muito findadas, da Era das Lendas e de Eras anteriores, abertas a todos, até aos plebeus, por três dias no mês e em dias de festival”, escrevera Eurian Romavni. Ele fizera elogios à inestimável coleção de estatuetas cuendillar, seis delas, que ficava em um estojo de vidro no centro do salão, sempre vigiada por quatro dos guardas pessoais da Panarca, quando era permitida a entrada de pessoas, e passara duas páginas discorrendo sobre as ossadas de bestas fabulosas “jamais vistas com vida pelos olhos dos homens”. Egwene estava vendo algumas dessas. Em um dos cantos do salão, havia o esqueleto de algo que parecia um urso, se ursos tivessem dois dentes frontais do tamanho de seu antebraço. Do lado oposto, jazia a ossada de alguma besta esguia de quatro patas, com um pescoço tão comprido que o crânio chegava à metade da altura das paredes. Havia mais, espalhados pelas paredes do salão, igualmente fantásticos. Todos pareciam antigos o bastante para fazer a Pedra de Tear parecer recém-construída. Ela se abaixou por sob a barreira de cordas e percorreu o salão lentamente, olhando tudo.

Uma estatueta desgastada pelo tempo exibia uma mulher aparentemente sem roupas, envolta em cabelos que caíam até os tornozelos. A princípio era similar às outras que estavam no mesmo estojo, todas não muito maiores do que a mão de Egwene. No entanto, emitia uma impressão de calor suave que ela reconhecia. Era um angreal, teve certeza. Perguntou-se por que a Torre não conseguira tomá-lo da Panarca. Um colar de elos delicados e dois braceletes de metal preto fosco, sozinhos em um suporte, a fizeram estremecer. Ela sentiu escuridão e dor associados a eles — uma dor aguda e muito, muito antiga. Uma coisa prateada em outro armário, algo que mais parecia uma estrela de três pontas dentro de um círculo, não era feita de qualquer substância que ela conhecesse. Era mais macia que metal, toda arranhada e cheia de goivaduras, porém ainda mais antiga do que qualquer um dos ossos. A dez passadas de distância, podia sentir orgulho e vaidade.

Uma coisa de fato parecia familiar, embora ela não fosse capaz de identificar o motivo. Enfiada em um canto de um dos armários, como se quem a tivesse posto ali não soubesse ao certo se era digna de ser exibida, jazia a metade superior de uma estatueta quebrada, entalhada em alguma pedra branca brilhante. Retratava uma mulher com uma das mãos erguidas, segurando uma esfera de cristal com a expressão calma, cheia de dignidade e de sábia autoridade. Quando inteira, deveria ter um pé de altura. Mas por que era tão familiar? O objeto parecia quase convidar Egwene a pegá-lo.

Foi só depois que os dedos de Egwene se fecharam na estatueta quebrada que ela percebeu que passara por cima da corda. Uma tolice, se não sei o que é, pensou, mas já era tarde demais.

Quando a mão agarrou a estatueta, o Poder jorrou em torrente para dentro dela, de volta para a figura quebrada, depois para ela, para a figura e de volta, para dentro e de volta. A esfera de cristal tremeluzia em clarões espasmódicos e sombrios, e seu cérebro sofreu pontadas dolorosas a cada clarão. Com um soluço de agonia, ela soltou a estatueta e apertou as mãos na cabeça.

A esfera de cristal se estilhaçou quando a estatueta caiu no chão e partiu-se em pedaços, e as pontadas em seu cérebro cessaram, deixando apenas uma lembrança embotada da dor e uma náusea que fez seus joelhos tremerem. Egwene fechou os olhos com força para não ver o quarto se deslocando. A estatueta só podia ser um ter’angreal, mas por que a machucara daquela forma simplesmente ao tocá-la? Talvez porque estivesse quebrado. Talvez, quebrado, não pudesse fazer aquilo a que se destinava. Ela nem mesmo queria pensar qual teria sido seu propósito. Testar ter’angreal era sempre perigoso. Pelo menos deveria estar irremediavelmente quebrado. Ali, pelo menos. Por que ele parecia me chamar?

A náusea foi embora, e ela abriu os olhos. A estatueta estava de volta na prateleira, tão inteira quanto da primeira vez em que a vira. Coisas estranhas aconteciam em Tel’aran’rhiod, mas aquilo era mais estranho do que o que ela desejava ver. E não fora por isso que viera. Primeiro precisava encontrar a saída do Palácio da Panarca. Passando de volta por cima da corda, ela saiu depressa do salão, tentando não correr.

Não havia sinal de vida no palácio, naturalmente. De vida humana, pelo menos. Peixes coloridos nadavam em grandes fontes, que esguichavam água, alegremente, nos pátios rodeados por varandas e calçadas cercadas de colunas delicadas, protegidas por trabalhos de cantaria que mais pareciam renda entalhada em padronagens intrincadas. Nas águas, flutuavam lótus com flores brancas do tamanho de pratos de jantar. No Mundo dos Sonhos, os lugares eram como no chamado mundo real. Só não havia gente. Lustres dourados muito elaborados ocupavam os corredores com pavios ainda não queimados, mas ela sentia o aroma do óleo perfumado. Seus pés não levantavam poeira dos carpetes luminosos, que sem dúvida nunca haviam sido pisados. Não ali.

Em dado momento, viu outra pessoa caminhando à sua frente, um homem de armadura de placa e malha douradas e ornamentadas, levando debaixo do braço um capacete dourado e pontudo com uma crista de plumas de garçota branca.

— Aeldra. — chamou o homem, sorrindo. — Aeldra, venha olhar para mim. Fui nomeado Senhor Capitão da Legião da Panarca. Aeldra? — Ele deu mais um passo à frente, ainda chamando, e de repente desapareceu. Não era um Sonhador. Não era sequer alguém usando um ter’angreal como seu anel de pedra ou o disco de ferro de Amico. Era apenas um homem cujo sonho chegara a um lugar do qual ele não tinha consciência, com perigos que desconhecia. Era comum que pessoas que morriam de repente durante o sono na verdade tivessem ido a Tel’aran’rhiod em seus sonhos e morrido por lá. Mas ele já se fora, de volta a um sonho comum.

Em Tear, a vela queimava ao lado da cama. Seu tempo em Tel’aran’rhiod estava se extinguindo.

Egwene apressou o passo e chegou diante de portas altas e entalhadas que levavam ao exterior, a uma ampla escadaria branca e uma imensa praça vazia. Tanchico se expandia para todas as direções ao longo de colinas íngremes, prédios brancos atrás de prédios brancos, todos reluzentes sob o sol, pontuados por centenas de torres finas e quase a mesma quantidade de domos pontiagudos, alguns dourados. O Círculo da Panarca, uma muralha alta e redonda de pedra branca, ficava à plena vista, a menos de meia milha de distância. Era apenas um pouco mais baixa que o Palácio da Panarca, que erguia-se no topo de uma das colinas mais elevadas. No topo da gigantesca escadaria, Egwene estava a uma altura suficiente para ver água brilhando a oeste, as baías que a separavam de outros dedos montanhosos onde ficava o restante da cidade. Tanchico era maior que Tear, talvez maior que Caemlyn.

Tanto a vasculhar, e ela nem sequer sabia em busca de quê. De algo que sugerisse a presença da Ajah Negra ou que indicasse algum tipo de perigo para Rand, se ambos existissem por ali. Se fosse uma Sonhadora de verdade, treinada no uso de seu talento, saberia o que procurar, saberia como interpretar o que via. Mas não restara ninguém para ensiná-la. As Sábias Aiel supostamente sabiam decifrar sonhos. Aviendha fora tão relutante em falar sobre as Sábias que Egwene não perguntara a nenhuma das outras Aiel. Talvez uma Sábia pudesse instruí-la. Se ela conseguisse encontrar alguma.