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Lá fora, restavam poucos indícios do ataque da noite anterior. Uma tapeçaria retalhada por espadas ali, um baú com um canto destroçado por um machado acolá, um trecho mais claro no chão de pedras onde antes havia um carpete que ficara manchado de sangue. A majhere seguia com seu exército de serviçais uniformizados, trabalhando à toda, embora muitos estivessem enfaixados enquanto varriam, esfregavam, limpavam e rearrumavam. Ela andava mancando, apoiada em um cajado. Era uma mulher grande, os cabelos grisalhos puxados para cima feito um chapéu redondo sobre a ferida enfaixada na cabeça, emitindo ordens em um tom firme, com clara intenção de remover cada vestígio da segunda violação da Pedra. Viu Perrin e dispensou-lhe uma mesura quase imperceptível. Nem mesmo os Grão-lordes recebiam muita atenção dela, mesmo quando estava tudo bem. Apesar de toda a faxina e esfregação, sob o cheiro de ceras, graxas, verniz e fluidos de limpeza, Perrin ainda podia captar o odor fraco de sangue, sangue humano pungente e metálico, sangue fétido de Trollocs e sangue ácido de Myrddraal — um fedor que queimava as narinas. Seria bom sair dali.

A porta do quarto de Loial tinha uma braça de largura e mais de duas de comprimento, com uma maçaneta gigantesca no formato de vinhas entrelaçadas bem na altura da cabeça de Perrin. A Pedra tinha alguns quartos de hóspedes para Ogier, mas raramente eram utilizados. A Pedra de Tear precedia até mesmo a era dos famosos trabalhos de cantaria dos Ogier, mas era um grande prestígio usar pedreiros daquela raça, pelo menos de vez em quando. Perrin bateu à porta e, ao chamado de “entre” em uma voz que soava como uma pequena avalanche, ergueu a mão e obedeceu.

O quarto tinha a mesma escala da porta, em todas as dimensões. Mas Loial, parado no centro do carpete, vestindo a camisa de manga e carregando um cachimbo comprido nos dentes, reduzia tudo a um tamanho aparentemente normal. O Ogier ficava mais alto que um Trolloc com as botas largas até as coxas, ainda que não fosse tão largo. Já não era estranho aos olhos de Perrin o casaco verde-escuro, abotoado até a cintura, com as barras abertas caídas até o topo das botas, que mais parecia um kilt por sobre as calças largas. Porém bastava um olhar para informar que não se tratava de um homem comum em um quarto comum. O nariz do Ogier era tão grande que parecia um focinho, e sobrancelhas, compridas feito bigodes, pendiam dos lados dos olhos do tamanho de xícaras de chá. As orelhas peludas despontavam dos cabelos negros e desgrenhados, que caíam quase até os ombros. Ao avistar Perrin, a criatura abriu um sorriso de orelha a orelha, ainda com o cachimbo na boca.

— Bom dia, Perrin — disse, retumbante, tirando o cachimbo da boca. — Dormiu bem? Nada fácil, depois de uma noite dessas. Eu mesmo passei metade da noite acordado, escrevendo sobre o ocorrido. — Ele tinha uma caneta na outra mão e manchas de tinta nos dedos grandes como salsichas.

Havia livros por toda parte, espalhados nas cadeiras próprias para Ogier, na imensa cama e na mesa que batia no peito de Perrin. Aquilo não era surpresa, mas o mais espantoso foram as flores. Flores de todo tipo, de todas as cores. Vasos, cestas, buquês amarrados com fitas ou barbantes, grandes montes de flores entrelaçadas dispostas como um muro de jardim. Perrin nunca vira algo parecido dentro de um quarto. O aroma preenchia o ar. Mas o que realmente chamou a atenção foi o inchaço na cabeça de Loial, do tamanho do punho de um homem, e a forma coxa com que caminhava. Loial estava machucado demais para viajar… Perrin sentiu vergonha em pensar dessa forma — o Ogier era seu amigo — mas era necessário.

— Você se machucou, Loial? Moiraine pode Curar você. Tenho certeza de que ela vai fazer isso.

— Ah, eu consigo caminhar sem problemas. E tinha tanta gente precisando da ajuda dela de verdade. Eu não queria atrapalhar. Claro que não é isso que vai atrapalhar meu trabalho. — Loial olhou para a mesa, onde um grande livro com encadernação em tecido estava aberto ao lado de um frasco de tinta desarrolhado. O objeto parecia grande para Perrin, mas caberia em um dos bolsos do casaco do Ogier. — Espero ter escrito tudo direitinho. Não vi muita coisa ontem, só depois de terminar.

— Loial — disse Faile, surgindo por detrás de um dos montes de flores com um livro nas mãos — é um herói.

Perrin deu um salto. As flores haviam mascarado o perfume dela. Loial fez “shhh”, pedindo à jovem que se calasse, e abanou as mãos enormes, as orelhas tremelicando de vergonha. No entanto, Faile prosseguiu, com a voz fria e os olhos, cálidos, fixos no rosto de Perrin:

— Ele levou todas as crianças que conseguiu, e também algumas mães, para um salão enorme e ficou protegendo a porta sozinho contra Trollocs e Myrddraal. A batalha toda. Essas flores são das mulheres da Pedra, como símbolo de respeito à sua coragem inabalável, à sua lealdade. — Faile fez as palavras “inabalável” e “lealdade” estalarem como açoites.

Perrin quase não conseguiu evitar o corpo de se encolher. Fizera a coisa certa, mas não dava para esperar que ela entendesse. Mesmo que Faile soubesse o motivo, não entenderia. Foi a coisa certa. Foi sim. Só queria se sentir melhor em relação à coisa toda. Não era justo que estivesse certo mas se sentisse mal.

— Não foi nada. — As orelhas de Loial tremelicaram. — Foi só porque as crianças não podiam se defender sozinhas. Só isso. Nada de heroísmo. Nada.

— Bobagem. — Faile marcou a página do livro com o dedo e aproximou-se do Ogier. A jovem não batia nem no peitoral de Loial. — Não existe uma mulher na Torre que não se casaria com você se fosse um humano, e algumas se casariam mesmo não sendo. Sabe, Loial você é mesmo muito leal, nem a rima fraca abala essa sua qualidade. Qualquer mulher amaria isso.

As orelhas do Ogier se enrijeceram de surpresa, e Perrin abriu um sorriso. Faile obviamente passara a manhã inteira derramando doce para cima de Loial, na esperança de que o Ogier concordasse em levá-la com eles, a despeito da vontade de Perrin. Mas, ao tentar bajulá-lo, a moça, sem saber, acabara de tocar em um ponto sensível.

— Tem notícias de sua mãe, Loial? — perguntou Perrin.

— Não. — Loial conseguia soar aliviado e preocupado ao mesmo tempo. — Mas vi Laefar na cidade, ontem. Ele ficou tão surpreso em me ver quanto eu fiquei em vê-lo, não somos figuras comuns em Tear. Ele veio do Pouso Shangtai para negociar uns reparos em algum trabalho de cantaria Ogier em um dos palácios. Tenho certeza de que as primeiras palavras que sairão de sua boca quando ele voltar para o pouso serão “Loial está em Tear”.

— Isso é preocupante — comentou Perrin, e o Ogier assentiu, desconsolado.

— Laefar contou que os Anciões disseram que sou um fugitivo, e que minha mãe prometeu me casar e me acalmar. Ela já até escolheu uma esposa. Laefar não sabia quem. Pelo menos disse que não sabia. Ele acha isso tudo muito engraçado. Minha mãe pode chegar em menos de um mês.

O rosto de Faile era o retrato da confusão, o que quase fez Perrin abrir outro sorriso. Ela achava que sabia muito mais do que ele a respeito do mundo — bem, na verdade sabia — mas não conhecia Loial. O Pouso Shangtai era a casa de Loial, na Espinha do Mundo, e, como o Ogier estava com pouco mais de noventa anos, ainda não tinha idade para sair de lá sozinho. Seu povo vivia por muito tempo. Para os padrões deles, Loial devia ser da idade de Perrin, talvez mais moço. Porém, o Ogier partira mesmo assim, queria ver o mundo, mas seu maior medo era que a mãe o encontrasse e o arrastasse de volta para o pouso, para se casar e nunca mais sair de lá.