— Você pode ir embora, por favor?
— Mostrarei a você que nem todas as Aes Sedai são como aquelas Vermelhas, Thom. Você precisa aprender isso.
— Por favor?
Ele continuou apoiado na mesa depois que ela se foi, sem querer deixar que Moiraine o visse desabar de joelhos, desajeitado, ou notasse as lágrimas correndo pelo velho rosto. Ah, Luz. Owyn. Enterrara aquilo o mais fundo que pudera. Não consegui chegar lá a tempo. Estava muito ocupado. Muito ocupado com o maldito Jogo das Casas. Esfregou o rosto, irritado. Moiraine era uma das melhores no Jogo. Mexendo com ele daquele jeito, puxando cada corda que ele pensava estar perfeitamente escondida. Owyn, Elayne. A filha de Morgase. Sentia apenas afeição por Morgase, talvez um pouco mais, porém era difícil alguém se desligar de uma criança que carregara no colo. Aquela garota, em Tanchico? Ela não é páreo para a cidade, mesmo que não houvesse guerra. Agora deve estar um covil de lobos raivosos. E Moiraine vai revelar os nomes. Tudo o que tinha de fazer era deixar Rand nas mãos da Aes Sedai. Assim como deixara Owyn. Ela o encurralara, Thom mais parecia uma serpente com um graveto cravado no corpo, condenado, por mais que se contorcesse para escapar. Que se queime, essa mulher.
Carregando uma cesta bordada no braço, Min juntou as saias com a outra mão e saiu do salão de jantar, logo após o café da manhã, em um passo suave, empertigada. Poderia equilibrar um cálice cheio de vinho na cabeça sem derrubar uma gota sequer. Em parte, porque não conseguia dar um passo decente dentro daquele vestido, todo de seda azul-clara, de corpete apertado, mangas e uma saia cheia cuja bainha bordada arrastava no chão se não fosse erguida. Em parte, também, porque tinha certeza de que sentia os olhos de Laras em suas costas.
Uma olhadela para trás comprovou que estava certa. A Mestra das Cozinhas, um barril de vinho com pernas, a encarava da porta do salão de jantar com um sorriso. Quem diria que a mulher fora uma beldade na juventude, ou que teria um lugar em seu coração para mocinhas belas e sedutoras? “Vivazes”, como as chamava. Quem suspeitaria que ela decidiria acolher “Elmindreda” sob as asas robustas? Não era uma posição confortável. Laras mantinha o olho atento e protetor em Min, um olho que parecia encontrá-la em qualquer lugar dentro dos muros da Torre. Min sorriu de volta e passou as mãos nos cabelos, um capacete redondo de cachos negros. Que a queime, mulher! Será que ela não tem alguma coisa para cozinhar, ou algum ajudante de cozinha com quem berrar?
Laras acenou para ela, que acenou de volta. Não podia dar-se ao luxo de ofender alguém que a observava tão de perto, pois não fazia ideia de quantos erros podia acabar cometendo. Laras sabia todos os truques das mulheres “vivazes” e ensinava a Min os que a garota não conhecia.
Um dos maiores erros, refletiu a jovem, enquanto se sentava no banco de mármore debaixo de um salgueiro alto, foi o bordado. Não do ponto de vista de Laras, mas do dela própria. Puxando da cesta o aro de bordado, examinou com pesar o trabalho do dia anterior, vários malmequeres amarelos inclinados e algo que era para ser um botão de rosa amarelo-claro, embora ninguém fosse capaz de adivinhar sem a devida explicação. Com um suspiro, começou a desfazer os pontos. Leane tinha razão, supôs. Uma mulher poderia passar horas sentada com um aro de bordado, observando a tudo e a todos, e ninguém acharia estranho. Porém, ajudaria bastante se Min tivesse um mínimo de talento para a coisa.
Pelo menos era uma manhã perfeita para ficar ao ar livre. O sol dourado acabara de despontar no horizonte, em um céu com poucas nuvens, brancas e fofas, que pareciam ordenadas para enfatizar a perfeição. Uma brisa leve captava o aroma de rosas e revolvia os altos arbustos com grandes flores vermelhas e brancas. Em breve, os caminhos de cascalho perto da árvore estariam repletos de gente absorta em suas tarefas, de Aes Sedai a cavalariços. Uma manhã perfeita, e um local perfeito para observar sem ser vista. Talvez hoje notasse algo de útil.
— Elmindreda?
Min deu um salto e enfiou o dedo furado na boca. Deu um giro no banco, preparada para xingar Gawyn por aparecer sorrateiro, mas as palavras congelaram em sua boca. Galad estava com ele. O rapaz era mais alto que Gawyn, tinha pernas compridas e se movia com a graça de um dançarino e com uma força esguia e musculosa. As mãos também eram compridas e elegantes, porém fortes. E o rosto… Ele era, simplesmente, o homem mais bonito que Min já vira.
— Pare de chupar o dedo — disse Gawyn, sorrindo. — Sabemos que é uma menininha bonita, não precisa provar.
Enrubescida, Min puxou a mão depressa, quase disparando um olhar furioso, o que seria totalmente inadequado para Elmindreda. Gawyn não precisara de ameaças ou ordens da Amyrlin para manter o segredo dela, bastou pedir, mas o rapaz aproveitava todas as oportunidades que tinha para provocá-la.
— Não é certo zombar, Gawyn — disse Galad — Ele não quis ofender, Srta. Elmindreda. Perdoe-me a confusão, mas será que já nos vimos antes? Quando franziu a testa para Gawyn, agora há pouco, de maneira tão feroz, quase tive a sensação de que já a conhecia.
Min baixou os olhos, recatada.
— Ah, eu jamais esqueceria que conheci o senhor, milorde Galad — disse, com a melhor voz de garotinha tonta.
O tom tímido e a raiva por conta do próprio deslize enviaram uma onda de calor que enrubesceu seu rosto, deixando o disfarce ainda melhor.
Não parecia em nada consigo mesma, e o vestido e o cabelo eram apenas parte do disfarce. Leane comprara cremes, talcos e toda sorte de coisas incríveis com perfumes misteriosos na cidade, depois a treinara até que Min fosse capaz de usar tudo aquilo de olhos fechados. Agora, a jovem tinha maçãs do rosto, além de mais cor nos lábios do que a natureza concedera. Um creme escuro delineava as pálpebras e um pó fino enfatizava os cílios e fazia os olhos parecerem maiores. Bem diferente do que era de fato. Algumas das noviças haviam elogiado sua beleza, admiradas, e até umas poucas Aes Sedai a chamaram de “uma criança muito bonita”. Odiava aquilo. Admitia que o vestido era bem bonito, mas de resto odiava tudo o mais. No entanto, não faria sentido usar um disfarce se não o sustentasse.
— Tenho certeza de que você se lembraria — disse Gawyn, com a voz seca. — Eu não queria ter atrapalhado seu bordado… São andorinhas, não são? Andorinhas amarelas? — Min enfiou o aro de volta na cesta. — Mas eu queria pedir sua opinião a respeito disso aqui. — Ele enfiou nas mãos dela um pequeno livro com capa de couro, velho e surrado, e de súbito sua voz pareceu mais séria. — Diga ao meu irmão que isso é uma bobagem. Talvez ele escute você.
Min examinou o livro. O Caminho da Luz, de Lothair Mantelar. Abriu em uma página ao acaso e leu.
— Por conseguinte, abjure todo o prazer, pois a bondade é pura abstração, um ideal perfeito e cristalino, turvado por emoções vis. Não dê prazer à carne. A carne é fraca, mas o espírito é forte. A carne é inútil quando é forte o espírito. O pensamento correto é afogado em sensações, e as ações corretas, estorvadas pelas paixões. Busque toda a alegria na retidão, apenas nela. — Parecia mesmo pura bobagem.
Min sorriu para Gawyn e até conseguiu soltar um risinho nervoso.
— Quantas palavras. Receio saber pouco sobre livros, milorde Gawyn. Sempre tive intenção de ler algum… Tenho mesmo. — Suspirou. — Mas tenho tão pouco tempo. Ora, levo horas só para arrumar o cabelo a contento. Os senhores acham que está bonito?
O espanto indignado no rosto do rapaz quase a fez gargalhar, mas ela conseguiu transformar a reação em uma risadinha. Era um prazer virar a mesa, para variar. Precisava fazer isso mais vezes. O disfarce guardava possibilidades que não considerara. A estadia na Torre se tornara completamente tediosa e irritante. Min merecia alguma diversão.