“Estamos presos ao mar, a água salgada corre em nossas veias. A maioria de nós não põe os pés na terra, a não ser para aguardar outro navio, para navegar de novo. Homens fortes choram quando precisam servir em terra firme. As mulheres em terra firme vão aos navios para ter seus filhos, ou até em um bote a remos, se não houver mais nada disponível, pois precisamos nascer na água, precisamos morrer nela e ser entregues a ela quando morrermos.
“A Profecia está sendo cumprida. Ele é o Coramoor. Aes Sedai servem a ele. Vocês são prova disso, já que estão aqui nesta cidade. Isto também está na Profecia. A Torre Branca será destruída em nome dele, e as Aes Sedai se ajoelharão para lavar seus pés e secá-los com os cabelos.
— Vai esperar sentada se acha que vai me ver lavar o pé de qualquer homem — rebateu Nynaeve secamente. — O que isso tem a ver com nossas passagens? Vocês vão nos levar ou não?
Elayne se encolheu, mas a Mestra das Velas respondeu com a mesma franqueza:
— Por que querem viajar para Tanchico? No momento, é um porto bem desagradável aonde chegar. Atraquei lá no inverno passado. O povo da costa quase invadiu minha embarcação querendo passagem para sair dali para qualquer lugar. Não se importavam, desde que fosse para longe de Tanchico. Não acho que as condições estejam muito melhores.
— Você sempre questiona tanto seus passageiros? — perguntou Nynaeve. — Ofereci o suficiente para comprar uma aldeia. Duas aldeias! Se quiserem mais, digam seu preço.
— Não é um preço — sussurrou Elayne, no ouvido dela. — É um presente!
Se Coine ficou ofendida, ou se sequer ouviu, não deu sinal.
— Por quê?
Nynaeve deu um puxão forte na trança, mas Elayne segurou seu braço. Tinham planejado manter alguns segredos entre si, mas sem dúvida haviam descoberto muitas coisas desde que se sentaram naquelas cadeiras, o suficiente para alterar qualquer plano. Havia momentos para segredos e momentos para a verdade.
— Caçamos a Ajah Negra, Mestra das Velas. Acreditamos que algumas delas estão em Tanchico. — Enfrentou o olhar irado de Nynaeve com muita calma. — Precisamos encontrá-las, ou elas podem fazer mal… Ao Dragão Renascido. Ao Coramoor.
— Que a Luz nos leve seguras até o ancoradouro — suspirou a Chamadora de Ventos. Era a primeira vez que falava, e Elayne a encarou, surpresa. Jorin franzia o cenho e não olhava para ninguém em especial, mas falava com a Mestra das Velas. — Podemos levá-las, minha irmã. Devemos.
Coine assentiu.
Elayne trocou olhares com Nynaeve e viu os próprios questionamentos espelhados nos olhos da outra mulher. Por que era a Chamadora de Ventos quem decidia? Por que não a Mestra das Velas? Ela era a capitã, qualquer que fosse o título. Pelo menos conseguiriam as passagens, no fim das contas. Por quanto?, perguntou-se Elayne. Qual será o valor do “presente”? Desejou que Nynaeve não tivesse revelado que tinham mais do que estava escrito na carta-de-direitos. E ela ainda me acusa de ficar jogando ouro ao vento.
A porta se abriu, deixando entrar um homem grisalho e corpulento vestindo calças largas de seda verde e cinturão, agitando um maço de papéis. Quatro aros de ouro decoravam cada uma das orelhas, e três pesadas correntes de ouro pendiam do pescoço, incluindo uma com um frasco de perfume. Uma cicatriz comprida e enrugada atravessava seu rosto e as duas facas curvas enfiadas no cinturão conferiam a ele um ar perigoso. O homem amarrou nas orelhas uma armação peculiar que sustentava lentes transparentes diante dos olhos. O Povo do Mar fazia as melhores lupas, lentes ustórias e coisas do tipo em algum lugar de suas ilhas, mas Elayne nunca vira nada parecido com aquele aparato. Ele espiou os papéis através das lentes e começou a falar, sem olhar para cima.
— Coine, este tolo está disposto a trocar quinhentas peles de raposa-das-neves de Kandor por aqueles três barrizinhos de tabaco de Dois Rios que consegui em Ebou Dar. Quinhentas! Pode trazê-las ao meio-dia. — Ele ergueu os olhos e levou um susto. — Perdoe-me, esposa. Eu não sabia que tinha convidadas. Que a Luz esteja com todas vocês.
— Ao meio-dia, marido — retrucou Coine — estarei descendo o rio. Ao cair da noite, já estarei no mar.
Ele se aprumou.
— Será que eu ainda sou o Mestre de Cargas, esposa, ou será que meu lugar foi tomado enquanto eu não estava olhando?
— Você é Mestre de Cargas, marido, mas precisa interromper os negócios agora e começar a se preparar para partir. Vamos zarpar para Tanchico.
— Tanchico! — Os papéis amassaram em suas mãos, e ele fez esforço para manter o controle. — Esposa… não! Mestra das Velas, você me disse que nosso próximo porto seria o de Mayene, e que depois rumaríamos a leste, para Shara. Fiz meus negócios com isso em mente. Shara, Mestra das Velas, não Tarabon. O que tenho em minha posse não valerá muito em Tanchico. Talvez nada! Posso saber por que é que meus negócios têm que ser arruinados, e o Bailador das Ondas, levado à falência?
Coine hesitou, mas quando falou a voz ainda era formal.
— Eu sou a Mestra das Velas, meu marido. O Bailador das Ondas navega quando e para onde eu ordenar. Por enquanto, isso é tudo.
— Como quiser, Mestra das Velas — retrucou ele, num tom áspero — que assim seja.
O homem pôs a mão no coração — Elayne pensou ter visto Coine se encolher — e se retirou com as costas tão rígidas quanto um dos mastros do navio.
— Precisarei compensá-lo — murmurou Coine, baixinho, olhando para a porta. — É claro, é agradável fazer as pazes com ele. Costuma ser. Ele me saudou como um servente, irmã.
— Sentimos muito por causar problemas, Mestra das Velas — disse Elayne, escolhendo as palavras. — E lamentamos ter testemunhado isso. Se tivermos causado qualquer constrangimento, por favor, aceite nossas desculpas.
— Constrangimento? — Coine parecia surpresa. — Aes Sedai, eu sou Mestra das Velas. Duvido que a presença de vocês deixe Toram constrangido, e eu não pediria desculpas a ele por isso, se fosse o caso. Os negócios são dele, mas a Mestra das Velas sou eu. Preciso compensá-lo, e isso não será fácil, já que preciso manter o motivo em segredo. Ele estava certo, e não consegui pensar depressa o suficiente para dar uma razão para a partida que não uma resposta irritada. Aquela cicatriz no rosto ele ganhou tirando os Seanchan do convés do Bailador das Ondas. Mas há cicatrizes mais antigas que ele ganhou defendendo meu navio, e, graças aos seus negócios, eu só preciso estender a mão para receber ouro. É pelas coisas que não posso dizer que preciso compensá-lo, porque ele merece saber.
— Eu não entendo — disse Nynaeve. — Pediríamos que mantivesse a Ajah Negra em segredo… — Ela lançou a Elayne um olhar firme, que prometia palavras duras quando estivessem sozinhas. A Filha-herdeira também tinha intenção de dizer algumas palavras sobre o significado de diplomacia… — Mas sem dúvida três mil coroas é razão suficiente para nos levar até Tanchico.
— Guardarei seu segredo, Aes Sedai. O que são e por que viajam. Muitos em minha tripulação consideram Aes Sedai má sorte. Se soubessem que não estão apenas levando Aes Sedai, mas as estão levando até a um porto onde outras podem estar servindo ao Pai das Tempestades… A graça da Luz brilhou sobre nós, para que ninguém estivesse perto para me ouvir chamá-las para cá. Vocês se ofenderiam se eu pedisse para ficarem aqui embaixo o máximo possível e para não usarem os anéis no convés?
Como resposta, Nynaeve puxou o anel da Grande Serpente do dedo e guardou-o dentro da bolsa do cinto. Elayne fez o mesmo, um pouco mais relutante. Gostava que outros vissem o anel. Sem confiar muito no estoque de diplomacia que ainda restava a Nynaeve, ela se pronunciou, antecipando-se à amiga: