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Enfim, estava ocupada. Ocupadíssima.

— As pessoas acreditam que o único sonho de uma mulher é casar e ter filhos. E você acha que, por causa de tudo que lhe contei, sofri muito na vida. Não é verdade, e já conheço esta história, outros homens se aproximaram de mim com a conversa de

“proteger-me” das tragédias.

“O que elas esquecem é que, desde a Grécia antiga, as pessoas que retornavam dos combates vinham mortas em cima de seus escudos, ou mais fortes, em cima de suas cicatrizes. Melhor assim: estou no campo de batalha desde que nasci, continuo viva, e não preciso ninguém para me proteger.”

Ela deu uma pausa.

— Vê como sou culta?

— Muito culta, mas quando ataca alguém mais fraca que você, está insinuando que realmente necessita de proteção. Podia ter arruinado sua carreira universitária ali.

— Tem razão. Aceito o convite.

A partir desse dia passamos a sair com regularidade, e quanto mais perto dela eu ficava, mais eu descobria minha própria 173

luz — porque me estimulava a dar sempre o melhor de mim mesmo.

Jamais tinha lido qualquer livro de magia ou esoterismo: dizia que era coisa do demônio, que a única salvação estava em Jesus e ponto final. De vez em quando insinuava coisas que não pareciam estar de acordo com os ensinamentos da Igreja:

— Cristo estava cercado de mendigos, prostitutas, cobradores de impostos, pescadores. Penso que com isso queria dizer que a centelha divina está na alma de todos, jamais se extingue. Quando fico quieta, ou quando estou muitíssimo agitada, sinto que estou vibrando junto com o Universo inteiro. E passo a conhecer coisas que não conheço — como se fosse o próprio Deus que estivesse guiando meus passos. Há minutos em que sinto que tudo me está sendo revelado.

E logo se corrigia:

— Isso é errado.

Athena vivia sempre entre dois mundos: o que sentia como verdadeiro e o que lhe era ensinado através de sua fé.

Certo dia, depois de quase um semestre de equações, cálculos, estudos de estrutura, disse que ia abandonar a faculdade:

— Mas você nunca comentou isso comigo!

— Tinha medo até de conversar este assunto comigo mesma. Entretanto, hoje estive na minha cabeleireira; ela trabalhou dia e noite para que sua filha pudesse acabar o curso de sociologia. A filha conseguiu terminar a faculdade, e, depois de bater em muitas portas, conseguiu trabalhar como secretária em uma firma de cimento. Mesmo assim, minha cabeleira repetia hoje, toda orgulhosa: “minha filha tem um diploma”.

“A maioria dos amigos de meus pais, e dos filhos dos amigos de meus pais, tem um diploma. Isso não significa que conseguiram trabalhar no que desejavam — muito pelo contrário, entraram e saíram de uma universidade porque alguém, em uma época em que as universidades parecem importantes, disse que uma pessoa para subir na vida precisava ter um diploma. E o mundo deixa de 174

ter excelentes jardineiros, padeiros, antiquários, pedreiros, escritores.”

Pedi que pensasse um pouco mais, antes de tomar uma decisão tão radical. Mas ela citou os versos de Robert Frost:

“Diante de mim havia duas estradas

Eu escolhi a estrada menos percorrida

E isso fez toda a diferença.”

No dia seguinte, não apareceu para as aulas. Em nosso encontro seguinte perguntei o que iria fazer.

— Casar. E ter um filho.

Não era um ultimato. Eu tinha vinte anos, ela dezenove, e pensava que ainda era muito cedo para qualquer compromisso desta natureza.

Mas Athena falava seríssimo. E eu precisava escolher entre perder a única coisa que realmente ocupava meu pensamento —

o amor por aquela mulher — ou perder minha liberdade e todas as escolhas que o futuro me prometia.

Honestamente, a decisão não foi nem um pouco difícil.

Padre Giancarlo Fontana, 72 anos

Claro que fiquei muito surpreso quando aquele casal, jovem demais, veio até a igreja para que organizássemos a cerimônia. Eu pouco conhecia Lukás Jessen-Petersen, e naquele mesmo dia aprendi que sua família, de uma obscura nobreza da Dinamarca, era frontalmente contra a união. Não apenas contra o casamento, mas também contra a Igreja.

Seu pai, baseando-se em argumentos científicos realmente incontestáveis, dizia que a Bíblia, onde toda a religião está baseada, na verdade não era um livro — mas uma colagem de 66 manuscritos diferentes, onde não se conhece nem o verdadeiro nome, nem a identidade do autor; que entre o primeiro e o último livro escrito se passaram quase mil anos, mais do que o tempo em que a América foi descoberta por Colombo. E que nenhum ser vivo em todo o planeta — dos macacos aos pássaros — precisa 175

de dez mandamentos para saber como comportar-se. Tudo que importa é que sigam as leis da natureza, e o mundo se manterá em harmonia.

Claro que leio a Bíblia. Claro que sei um pouco de sua história. Mas os seres humanos que a escreveram foram instrumentos do Poder Divino, e Jesus forjou uma aliança muito mais forte que os dez mandamentos: o amor. Os pássaros, os macacos, seja lá de que criatura de Deus estivermos falando, obedecem aos seus instintos e seguem apenas aquilo que está programado. No caso do ser humano, as coisas ficam mais complicadas porque ele conhece o amor e as suas armadilhas.

Pronto. Já estou eu fazendo de novo um sermão quando na verdade devia estar falando do meu encontro com Athena e Lukás. Enquanto conversava com o rapaz — e eu digo conversar, porque não pertencemos à mesma fé, e portanto não estou submetido ao segredo da confissão, soube que, além do anticlericalismo que reinava em casa, havia uma imensa resistência pelo fato de Athena ser estrangeira. Tive vontade de pedir que citasse pelo menos um trecho da Bíblia, onde não está nenhuma profissão de fé, mas um alerta ao bomsenso:

“Não abominarás o edomeu, pois é teu irmão; nem abominarás o egípcio, pois estrangeiro foste na sua terra.”

Perdão. De novo começo a citar a Bíblia, e prometo que irei me controlar a partir de agora. Após a conversa com o rapaz, passei pelo menos umas duas horas com Sherine — ou Athena, como preferia ser chamada.

Athena sempre me intrigou. Desde que começou a freqüentar a igreja, me parecia ter um projeto muito claro em mente: tornar-se santa. Disse-me que, embora seu namorado não soubesse, pouco antes da guerra civil estourar em Beirute tivera uma experiência muito semelhante à de Santa Teresa de Lisieux: tinha visto sangue nas ruas. Podemos atribuir tudo isso a um trauma de infância e adolescência, mas o fato é que tal experiência, conhecida como “a possessão criativa pelo sagrado”

acontece com todos os seres humanos, em maior ou menor escala. De 176

repente, por uma fração de segundo, sentimos que toda a nossa vida está justificada, nossos pecados perdoados, o amor sempre é mais forte, e pode nos transformar definitivamente.

Mas também é neste momento que temos medo. Entregar-se por completo ao amor, seja ele divino ou humano, significa renunciar a tudo — inclusive ao seu próprio bem-estar, ou sua própria capacidade de tomar decisões. Significa amar no mais profundo sentido da palavra. Na verdade, não queremos ser salvos da maneira que Deus escolheu para nos resgatar: queremos manter o absoluto controle de todos os passos, ter plena consciência de nossas decisões, sermos capazes de escolher o objeto de nossa devoção.

Com o amor não é assim — ele chega, instala-se, e passa a dirigir tudo. Só mesmo almas muito fortes deixam-se levar, e Athena era uma alma forte.

Tão forte que passava horas em profunda contemplação.

Tinha um dom especial para a música; diziam que dançava muito bem, mas como a Igreja não é um local apropriado para isso, costumava trazer seu violão todas as manhãs, e ficar pelo menos algum tempo cantando para a Virgem, antes de ir para a universidade.

Ainda me recordo de quando a escutei pela primeira vez. Já havia celebrado a missa matinal para os poucos paroquianos que se dispõem a acordar cedo no inverno, quando me lembrei que havia esquecido de recolher o dinheiro que depositaram na caixa de oferendas. Voltei, e escutei uma música que me fez ver tudo de maneira diferente, como se o ambiente tivesse sido tocado pela mão de um anjo. Em um canto, numa espécie de êxtase, uma jovem de aproximadamente 20 anos de idade tocava em seu violão alguns hinos de louvor, com os olhos fixos na imagem da Imaculada Conceição.