Tyrion pensou em Tysha. Olhou os campos por onde os deuses em tempos tinham caminhado.
— Que tipo de deuses fazem ratazanas, pragas e anões? — Ocorreu-lhe outra passagem da Estrela de Sete Pontas. — A Donzela trouxe-lhe uma moça flexível como um salgueiro com olhos que eram como profundas lagoas azuis, e Hugor declarou que a tomaria como noiva. E assim a Mãe tornou-a fértil, e a Velha predisse que ela daria ao rei quarenta e quatro poderosos filhos. O Guerreiro deu força aos seus braços ao passo que o Ferreiro fez para cada um uma armadura de placas de aço.
— O seu Ferreiro deve ter sido de Roine — gracejou Illyrio. — Os ândalos aprenderam a arte de trabalhar o ferro com os roinares que viviam ao longo do rio. É sabido.
— Não pelos nossos septões. — Tyrion indicou os campos com um gesto. — Quem vive nestas planícies?
— Agricultores e trabalhadores, ligados a terra. Há pomares, quintas, minas… Eu próprio sou dono de algumas, embora raramente as visite. Porque haveria de passar os meus dias aqui, com a miríade de delícias de Pentos à mão?
— Miríade de delícias. — E enormes e grossas muralhas. Tyrion fez o vinho girar na taça. — Não vimos vilas desde Pentos.
— Há ruínas. — Illyrio indicou as cortinas com uma perna de frango.
— Os senhores dos cavalos vêm nesta direção sempre que um khal qualquer mete na cabeça ver o mar. Os dothraki não gostam de vilas, devem saber disto até em Westeros.
— Caí sobre um desses khalasares e destruí-o e descobrireis que os dothraki deixam de ser tão rápidos a atravessar o Roine.
— Sai mais barato comprar os inimigos com comida e presentes.
Se eu tivesse pensado em trazer um belo queijo para a batalha da Água Negra podia ainda ter o meu nariz completo. O Lorde Tywin sempre nutrira desprezo pelas Cidades Livres. Combatem com moedas em vez de espadas, costumava dizer. O ouro tem os seus usos, mas as guerras são ganhas com ferro.
— O meu pai sempre disse que se der ouro a um inimigo ele se limitará a vir buscar mais.
— Esse é o mesmo pai que assassinastes? — Illyrio atirou o osso de galinha para fora da liteira. — Mercenários não resistem contra cavaleiros dothraki. Isso ficou provado em Qohor.
— Nem sequer o seu bravo Griff? — troçou Tyrion.
— O Griff é diferente. Tem um filho que adora. Jovem Griff é como o rapaz se chama. Nunca houve rapaz mais nobre. O vinho, a comida, o sol, o balanço da liteira, tudo conspirava para o deixar sonolento. E por isso dormiu, acordou, bebeu. Illyrio acompanhava-o taça por taça. E quando o céu tomou o tom púrpura do ocaso, o gordo começou a ressonar.
Nessa noite, Tyrion Lannister sonhou com uma batalha que tornou os montes de Westeros vermelhos como sangue. Estava no meio dela, entregando a morte com um machado do seu tamanho, combatendo lado a lado com Barristan, o Ousado, e Açamargo, enquanto dragões rodopiavam pelo céu por cima deles. No sonho, tinha duas cabeças, ambas sem nariz. O pai liderava o inimigo, de modo que o matou outra vez. Depois matou o irmão Jaime, atacando-lhe a cara até a transformar numa ruína rubra, rindo-se de todas as vezes que dava um golpe. Foi só quando o combate terminou que se percebeu de que a sua segunda cabeça estava chorando.
Quando acordou, tinha as pernas atrofiadas rígidas como ferro. Illyrio estava comendo azeitonas.
— Onde estamos? — perguntou-lhe Tyrion.
— Ainda não saímos das Planícies, meu apressado amigo. Em breve, a nossa estrada entrará nos Montes Veludo. Começamos aí a ascensão até Ghoyan Drohe, nas margens do Pequeno Roine.
Ghoyan Drohe fora uma cidade roinar até que os dragões de Valíria a reduziram a uma desolação em brasa. Estou viajando tanto ao longo de léguas como de anos, refletiu Tyrion, regressando na história até aos dias em que os dragões governavam a terra.
Tyrion dormiu, acordou e voltou a dormir, e o dia e a noite pareceram não importar. Os Montes Veludo revelaram-se uma desilusão.
— Metade das rameiras de Lanisporto tem seios maiores do que estes montes — disse a Illyrio. — Devíam chamar-lhes Tetas Veludo. — Viram um círculo de pedras verticais que Illyrio afirmou terem sido erguidas por gigantes, e mais tarde um lago profundo.
— Aqui vivia um grupo de salteadores que atacava todos os que passavam por cá — disse Illyrio — Diz-se que ainda vivem debaixo de água. Aqueles que pescam no lago são puxados para baixo e devorados. — Na noite seguinte chegaram a uma enorme esfinge valiriana acocorada ao lado da estrada. Tinha corpo de dragão e cara de mulher.
— Uma rainha dragão — disse Tyrion. — Um presságio agradável.
— Falta o rei dela. — Illyrio apontou para o plinto liso de pedra sobre o qual estivera em tempos a segunda esfinge, agora coberto de musgo e trepadeiras em flor. — Os senhores dos cavalos construíram rodas de pedra por baixo dele e arrastaram-no para Vaes Dothrak.
Isso também é um presságio, pensou Tyrion, mas não tão esperançoso.
Nessa noite, mais bêbado do que de costume, desatou subitamente a cantar.
Cavalgou pelas ruas da cidade,
desde o alto da sua colina,
Por becos e degraus e calçadas,
para os braços da sua menina.
Porque ela era o secreto tesouro,
a sua vergonha e seu prazer.
E corrente e forte nada são,
comparados com beijos de mulher.
Aquela era toda a letra que conhecia, à parte o refrão. Mãos de ouro são sempre frias, mas há calor numas mãos de mulher. As mãos de Shae tinham-lhe batido enquanto as mãos de ouro se enterravam na sua garganta. Não se lembrava se nelas houvera calor ou não. À medida que as forças lhe iam esgotando, os seus golpes tinham-se transformado em traças esvoaçando em volta do rosto. De cada vez que dava à corrente mais um torção, as mãos de ouro enterravam-se mais. E corrente e forte nada são, comparados com beijos de mulher. A teria beijado uma última vez, depois de estar morta? Não conseguia lembrar-se… embora ainda recordasse a primeira vez que a beijara, na sua tenda ao lado do Ramo Verde. Que bem soubera a sua boca.
Também se lembrava da primeira vez com Tysha. Ela não sabia como se fazia, tal como eu. Andavamos sempre a dar encontrões com os narizes,mas quando lhe toquei na língua com a minha, ela tremeu. Tyrion fechou os olhos para evocar a cara dela, mas em vez disso viu o pai, acocorado numa latrina com o roupão erguido em volta da cintura.
— Onde quer que as rameiras vão — dissera o Lorde Tywin, e a besta fizera trum.
O anão virou-se ao contrário, enterrando profundamente meio nariz nas almofadas de seda. O sono abriu-se debaixo dele como um poço, e Tyrion atirou-se lá para dentro determinado a deixar que a escuridão odevorasse.
O ASSISTENTE DO MERCADOR
O Aventura fedia.