— Estas arcas que lhes trouxemos — disse enquanto mastigavam. — A princípio pensei que fosse ouro para a Companhia Dourada, até ver Sor Rolly içar uma delas para cima de um ombro. Se estivesse cheia de dinheiro, nunca lhe teria pegado tão facilmente.
— São só armaduras — disse o Pato, encolhendo os ombros.
— E também roupa — interrompeu Haldon. — Roupa de corte, para todo o nosso grupo. Boas lãs, veludos, mantos de seda. Uma pessoa não se apresenta a uma rainha com roupa maltrapilha… nem de mãos vazias. O magíster teve a bondade de nos fornecer presentes adequados.
Ao nascer da Lua estavam de volta às selas, trotando para leste sob um manto de estrelas. A velha estrada valiriana cintilava à frente deles como uma longa fita de prata serpenteando através de bosques e vales. Durante algum tempo, Tyrion Lannister sentiu-se quase em paz.
— O Lomas Longstrider disse a verdade. A estrada é uma maravilha.
— Lomas Longstrider? — perguntou o Pato.
— Um escriba, há muito morto — disse Haldon. — Passou a vida viajando pelo mundo e escrevendo sobre as terras que visitou em dois livros a que chamou Maravilhas e Maravilhas Feitas Pelo Homem.
— Um tio meu ofereceu-me quando eu era rapaz — disse Tyrion. —Li-os até se desfazerem em pedaços.
— Os deuses fizeram sete maravilhas, e os mortais fizeram nove — citou o Semi-meistre. — Foi bastante ímpio da parte dos mortais fazerem mais duas do que os deuses, mas pronto. As estradas de pedra de Valíria eram uma das nove do Longstrider. A quinta, creio eu.
— A quarta — disse Tyrion, o qual decorara todas as dezesseis maravilhas em rapaz. O tio Gerion gostava de fazê-lo subir para cima da mesa durante os banquetes e de o pôr a recitá-las. Gostava bastante daquilo, não gostava? Estar ali em pé entre as bandejas com todos os olhos postos em mim, demonstrando como era um anãozinho esperto. Ao longo de anos, mais tarde, acariciara o sonho de um dia viajar pelo mundo e ver pessoalmente as maravilhas de Longstrider. O Lorde Tywin pusera fim a essa esperança dez dias antes do décimo sexto dia do nome do seu filho anão, quando Tyrion pedira para fazer uma viagem pelas Nove Cidades Livres como os tios tinham feito na mesma idade.
— Podia confiar-se nos meus irmãos para não trazerem a vergonha à Casa Lannister — respondera o pai. — Nunca nenhum se casou com uma rameira. — E quando Tyrion fizera lhe lembrar de que dentro de dez dias seria um homem feito, livre para viajar para onde quisesse, o Lorde Tywin dissera:
— Nenhum homem é livre. Só as crianças e os tolos pensam o contrário. Vai, à vontade. Usa roupa de retalhos e faz o pino para divertir os senhores das especiarias e os reis do queijo. Basta que trate de pagar as suas passagens e que ponhas de parte quailquer ideia que possa ter sobre regressar. — Perante aquilo, o desafio do rapaz ruíra. — Se é ocupação útil que quer, será ocupação útil que terás — dissera o pai. E, portanto, para assinalar a sua passagem à idade adulta, Tyrion fora encarregado de todos os escoadouros e cisternas no interior do Rochedo Casterly. Ele se calhar esperava que eu caísse em alguma. O Lorde Tywin, nisso, ficara desapontado. Os escoadouros nunca escoaram tão bem como quando estiveram sob a sua responsabilidade.
Preciso de uma taça de vinho, para lavar da boca o sabor a Tywin. Um odre de vinho me serviria ainda melhor.
Cavalgaram a noite inteira, com Tyrion dormindo aos arrancos, cochilando contra o arção e acordando de repente. De vez em quando, começava a deslizar da sela para o lado, mas Sor Rolly deitava-lhe uma mão e voltava a endireitá-lo. Pela madrugada, as pernas do anão doíam e as suas nádegas estavam esfoladas e em carne viva.
Foi só no dia seguinte que chegaram ao local de Ghoyan Drohe, mesmo ao lado do rio.
— O lendário Roine — disse Tyrion, quando vislumbrou o lento e verde curso de água do cume de uma elevação.
— O Pequeno Roine — disse o Pato.
— É isso, sim. — Um rio bastante agradável suponho, mas o ramo menor do Tridente tem o dobro da largura e todos os três correm mais depressa. A cidade não era mais impressionante. Ghoyan Drohe nunca foi grande, segundo Tyrion recordava das suas histórias, mas foi um lugar bonito, verde e florescente, uma cidade de canais e fontanários. Até à guerra. Até à chegada dos dragões. Mil anos mais tarde, os canais estavam afogados em ervas daninhas e lama, e lagoas de água estagnada geravam enxames de moscas. As pedras quebradas de templos e palácios estavam afundando-se de regresso a terra, e velhos salgueiros nodosos cresciam densos ao longo das margens do rio.
Algumas pessoas ainda continuavam vivendo naquela miséria, cuidando de pequenos jardins entre as ervas daninhas. O som de cascos de cavalos ressoando na velha estrada valiriana pôs a maioria a se precipitar de regresso aos buracos de onde tinham saído, mas as mais ousadas deixaram-se ficar ao sol durante tempo suficiente para fitar os cavaleiros de passagem com olhos mortiços e incuriosos. Uma mulher nua com lama até os joelhos não parecia ser capaz de tirar os olhos de Tyrion. Ela nunca tinha visto um anão, compreendeu. Muito menos um anão sem nariz. Fez uma careta e deitou a língua de fora, e a menina desatou a chorar.
— O que foi que você fez? — perguntou Pato.
— Soprei-lhe um beijo. Todas as mulheres choram quando as beijo.
Atrás dos salgueiros emaranhados, a estrada terminava abruptamente e viraram para norte, para um curto percurso, cavalgando ao lado da água até que a vegetação rasteira desapareceu e deram por si num velho cais de pedra, meio submerso e rodeado de altas e castanhas ervas daninha.
— Pato! — soou um grito. — Haldon! — Tyrion espetou a cabeça para um lado e viu um rapaz em pé no telhado de um edifício baixo de madeira, acenando com um chapéu de palha de aba larga. Era um jovem ágil e bem feito, com uma constituição esguia e uma cabeleira azul escura. O anão estimou-lhe a idade em quinze, dezesseis anos, ou tão perto disso que não faria diferença.
O telhado sobre o qual o rapaz se encontrava veio a revelar-se a cabine da Tímida Donzela, um velho e decrépito barco de varejo com um só mastro. Era largo e de baixo calado, ideal para abrir caminho pelos menores dos cursos d’água e para caranguejar por cima de bancos de areia. Uma feia donzela, pensou Tyrion, mas às vezes as mais feias são as mais famintas quando caem na cama. Os barcos de varejo que percorriam regularmente os rios de Dorne eram com frequência pintados em cores berrantes e cobertos de talha requintada, mas aquela donzela não. A sua pintura era de um castanho acinzentado de lama, manchada e a descascar, a sua grande e curva cana do leme era simplese sem adornos. Parece um bocado de terra, pensou, mas sem dúvida que é esse o objetivo.
Por essa altura, já o Pato respondia às saudações. A égua fez esparrinhar água nos baixios, espezinhando os juncos. O rapaz saltou do teto da cabine para o convés do barco de varejo e o resto da tripulação da Tímida Donzela fez a sua aparição. Um casal mais idoso com uma qualidade roinar nas feições estava ao lado da cana do leme, ao passo que uma bonita septã vestida com um suave traje branco atravessou a porta da cabine e afastou dos olhos uma madeixa de cabelo castanho escuro.