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Uma vez lá dentro, o capitão tirou o manto e pendurou-o em um pino, para não deixar poças no gasto tapete de Myr. Davos fez o mesmo, remexendo no pregador com as mãos atadas. Não tinha esquecido as cortesias que aprendera em Pedra do Dragão durante os seus anos de serviço.

Foram encontrar o senhor sozinho nas sombras do seu salão, comendo um jantar de cerveja, pão e estufado das irmãs. Vinte arandelas de ferro estavam montadas ao longo das espessas paredes de pedra, mas só quatro continham archotes, e nenhum deles estava aceso. Duas grossas velas de sebo davam uma luz parca e tremeluzente. Davos ouvia a chuva açoitando as paredes e um pingar constante vindo de onde, no telhado, se abrira uma goteira.

— Senhor — disse o capitão — encontramos este homem na Barriga da Baleia, tentando comprar passagem pra fora da ilha. Tinha doze dragões com ele, e também esta coisa. — O capitão colocou na mesa ao lado do senhor: uma fita larga de veludo negro ornada com pano de ouro e ostentando três selos; um veado coroado estampado em cera de abelha dourada, um coração flamejante em vermelho, uma mão em branco.

Davos esperou, molhado e pingando, com os pulsos arranhados onde a corda úmida se enterrava na pele. Bastaria uma palavra daquele senhor para ele estar em breve pendurado do Portão da Forca de Vilirmãs, mas pelo menos estava fora da chuva, com pedra sólida debaixo dos pés em vez de um convés oscilante. Estava ensopado, dolorido e descomposto, perturbado pelo desgosto e a traição, e mortalmente farto de tempestades.

O senhor limpou a boca com as costas da mão e pegou na fita para observar mais de perto. Um relâmpago brilhou lá fora, fazendo as seteiras cintilar azuis e brancas durante meio segundo. Um, dois, três, quatro, contou Davos, antes de chegar o trovão. Quando se silenciou, pôs-se à escuta do gotejar da água e do rugido mais indistinto sob os seus pés, onde as ondas se esmagavam contra os enormes arcos de pedra de Quebrágua e rodopiavam através das suas masmorras. Podia perfeitamente acabar lá em baixo, acorrentado a um úmido chão de pedra e deixado para se afogar quando a maré invadisse a masmorra. Não, tentou dizer a si, um contrabandista podia morrer assim, mas um Mão do Rei não. Valho mais se ele me vender à sua rainha.

O senhor passou os dedos pela fita, franzindo o semblante aos selos. Era um homem feio, grande e carnudo, com os ombros espessos de um remador e sem pescoço. Barba por fazer, irregular e grisalha, cobria-lhe as bochechas e o queixo, com manchas onde crescia branca. Por cima de uma testa maciça, era calvo. O nariz era grumoso e tornado vermelho por veias rotas, os labios eram grossos, e tinha uma espécie de membrana entre os três dedos intermediarios da mão direita. Davos ouvira dizer que alguns dos senhores das Três Irmãs tinham mãos e pés membranosos, mas sempre encarara a história como mais um relato de marinheiros.

O senhor recostou-se.

— Cortem as cordas — disse — e descalçem essas luvas. Quero ver suas mãos.

O capitão fez o que lhe era dito. Quando puxou para cima a mutilada mão esquerda do cativo, o relâmpago voltou a brilhar, derramando a sombra dos dedos encurtados de Davos Seaworth sobre a cara rude e brutal de Godric Borrell, Senhor de Irmã Doce.

— Qualquer homem pode roubar uma fita — disse o senhor — mas esses dedos não mentem. — É o cavaleiro das cebolas.

— Chamam-me disso, senhor. — O próprio Davos era senhor, e já era cavaleiro há muitos anos, mas no seu íntimo continuava a ser o que sempre fora, um contrabandista de nascimento plebeu que comprara o grau de cavaleiro com um porão de cebolas e peixe salgado. — Também me chamam de coisas piores.

— Pois sim. Traidor. Rebelde. Vira-casaca.

Irritou-se com a última palavra.

— Nunca virei à casaca, senhor. Sou um homem do rei.

— Só se Stannis for um rei. — O senhor avaliou-o com duros olhos negros. — A maioria dos cavaleiros que desembarcam nas minhas costas procura-me no meu palácio, não na Barriga da Baleia. Vil covil de contrabandistas, esse. Está regressando ao seu antigo ofício, cavaleiro das cebolas?

— Não, senhor. Procurava passagem para Porto Branco. O rei enviou-me, com uma mensagem para o senhor da cidade.

— Então está no lugar errado com o senhor errado. — O Lorde Godric pareceu divertido. — Isto é Vilirmãs, na Irmã Doce.

— Eu sei que é. — Nada havia de doce em Vilirmãs, porém. Era uma vila maligna, uma pocilga, pequena, má e fétida dos odores a caca de porco e peixe podre. Davos lembrava-se bem dela dos seus dias de contrabandista. As Três Irmãs eram pouso favorito para contrabandistas há centenas de anos, e antes disso tinham sido um ninho de piratas. As ruas de Vilirmãs eram lama e tábuas, as suas casas eram cabanas de taipa com telhados de palha, e junto do Portão da Forca havia sempre enforcados com as entranhas pendentes.

— Tem amigos aqui, não duvido — disse o senhor. — Todos os contrabandistas têm amigos nas Irmãs. Alguns deles são também meus amigos. Aqueles que não são, enforco-os. Deixo-os sufocar lentamente, com as tripas batendo nos joelhos. — O salão voltou a iluminar-se quando um relâmpago brilhou nas janelas. Dois segundos mais tarde, chegou o trovão. — Se é Porto Branco que quer, porque você está em Vilirmãs? O que te trouxe aqui?

Uma ordem de um rei e uma traição de um amigo, podia ter dito Davos. Em vez disso, respondeu:

— Tempestades.

Vinte e nove navios tinham zarpado da Muralha. Se metade deles continuassem flutuando, Davos se sentiria chocado. Céus negros, ventos amargos e chuvas cortantes tinham os perseguido ao longo de toda a costa. As galés Oledo e Filho da Velha Mãe tinham sido atiradas contra os rochedos de Skagos, a ilha de unicórnios e canibais onde até o Bastardo Cego temera acostar; a grande coca Saathos Saan fora a pique ao largo dos Penhascos Cinzentos.

— Stannis pagará por elas — enfurecera-se Salladhor Saan. — Pagará por elas com bom ouro, por cada uma. — Era como se algum deus furioso estivesse reclamando o pagamento da viagem fácil que tinham tido para norte, empurrado por um vento constante de sul desde Pedra do Dragão até à Muralha. Outra tormenta rasgara o velame da Farta Colheita, forçando Salla a rebocá-la. Dez léguas ao norte da Atalaia da Viúva os mares tinham voltado a encapelar-se, atirando a Colheita contra uma das galés que a rebocava e afundando-as a ambas. O resto da frota lisena fora espalhada pelo mar estreito. Alguns dos navios acabariam por ir dar a um ou outro porto. Outros nunca mais seriam vistos.

— Salladhor, o Pedinte, foi isso o que o seu rei fez de mim — queixara-se Salladhor Saan a Davos quando os restos da sua frota atravessaram coxeando a Dentada. — Salladhor, o Esmagado. Onde estão os meus navios? E o meu ouro, onde está todo o ouro que me foi prometido? — quando Davos tentara assegurar-lhe que obteria o seu pagamento, Salla explodira. — Quando, quando? Amanhã, na lua nova, quando o cometa vermelho voltar? Ele está prometendo-me ouro e pedras preciosas, sempre prometendo, mas o seu ouro eu não vi. Tenho a palavra dele, diz ele, oh, sim, a sua régia palavra, ele escreve-a. Será que Salladhor Saan pode comer a palavra do rei? Pode matar a sede com pergaminhos e selos de cera? Pode atirar promessas para uma cama de penas e fodê-las até guincharem?

Davos tentara persuadi-lo a manter-se fiel. Fizera notar que se Salla abandonasse Stannis e a sua causa, abandonava todas as esperanças de receber o ouro que lhe era devido. Afinal de contas, não era provável que um Rei Tommen vitorioso pagasse as dívidas do seu tio derrotado. A única esperança de Salla era permanecer leal a Stannis Baratheon até este conquistar o Trono de Ferro. De outro modo, nunca veria um tostão do seu dinheiro. Tinha de ter paciência.