Em Matreira não. Haggon teria chamado isso de abominação, mas Varamyr enfiara-se frequentemente na pele dela enquanto a loba estava sendo montada por Um-Olho. Contudo, não queria passar a sua nova vida como uma loba, a menos que não tivesse outra hipótese. Furtivo, o macho mais novo poderia lhe servir melhor… se bem que Um-Olho fosse maior e mais feroz e fosse Um-Olho quem montava Matreira sempre que ela entrava no cio.
— Dizem que se esquece — dissera-lhe Haggon, algumas semanas antes da sua morte. — Quando a carne do homem morre, o seu espírito continua vivendo dentro do animal, mas a memória vai-se desvanecendo todos os dias, e o animal torna-se um pouco menos um warg, um pouco mais um lobo, até que nada reste do homem e só fique a fera.
Varamyr sabia que aquilo era verdade. Quando reclamara para si a águia que fora de Orell, conseguira sentir o outro troca-peles se enfurecer com a sua presença. Orell tinha sido morto pelo corvo vira-casaca Jon Snow, e o ódio que sentia pelo seu assassino fora tão forte que Varamyr dera por odiar também o rapaz. Compreendera o que Snow era no momento em que vira aquele grande lobo gigante branco caminhando em silêncio a seu lado. Um troca-peles era sempre capaz de detectar outro. Mance deveria ter me deixado capturar o lobo gigante. Aí estaria uma segunda vida digna de um rei. Poderia ter feito, não duvidava. O dom era forte em Snow, mas o jovem não foi ensinado e ainda combatia a sua natureza quando devia ter exultado com ela.
Varamyr conseguia ver os olhos vermelhos do represeiro fitá-lo do tronco branco. Os deuses estão me avaliando. Foi percorrido por um arrepio. Fizera coisas más, coisas terríveis. Roubara, matara, violara. Empanturrara-se de carne humana e lambera o sangue de moribundos enquanto ele jorrava rubro e quente das gargantas rasgadas. Perseguira inimigos através dos bosques, caíra sobre eles enquanto dormiam, rasgara-lhes as barrigas fazendo sair às entranhas, e espalhara-as pela terra lamacenta. Que bem soube a carne deles.
— Isso foi o animal, não eu — disse num sussurro rouco. — Isso foi o dom que me concederam.
Os deuses não responderam. A sua respiração pairou pálida e brumosa no ar. Conseguia sentir gelo formando em sua barba. Varamyr Seis-Peles fechou os olhos.
Sonhou um velho sonho sobre uma choupana junto ao mar, três cães ganindo, lágrimas de uma mulher.
Bossa. Ela chora por Bossa, mas nunca chorou por mim.
Grumo nascera um mês antes do tempo, e estava tantas vezes doente que ninguém esperava que sobrevivesse. A mãe esperara até ele ter quase quatro anos para lhe dar um nome como devia ser, e por essa altura era tarde demais. Toda a aldeia se habituara a chamar-lhe Grumo, o nome que a irmã Meha lhe dera quando ainda estava na barriga da mãe. Meha também dera o nome a Bossa, mas o irmãozinho de Grumo nascera no tempo certo, grande, vermelho e robusto, sugando avidamente as tetas da mãe. Ela ia dar-lhe o nome do pai. Mas ele morreu. Morreu quando tinha dois anos e eu seis, três dias antes do dia do seu nome.
— O seu pequenino está agora com os deuses — dissera a bruxa da floresta à mãe enquanto ela chorava. — Nunca mais terá dores, nunca terá fome, nunca chorará. Os deuses levaram-no para a terra, para as árvores. Os deuses estão a toda a nossa volta, nas rochas e nos ribeirões, nas aves e nos animais. O seu Bossa foi se juntar a eles. Será o mundo e tudo o que existe no mundo.
As palavras da velha tinham atravessado Grumo como uma faca. Bossa vê. Está me observando. Ele sabe. Grumo não se podia esconder dele, não podia se enfiar atrás das saias da mãe ou fugir com os cães para escapar à fúria do pai. Os cães. Rabo-Cortado, Farejo, Rosnão. Eram bons cães. Eram meus amigos.
Quando o pai encontrara os cães farejando em volta do corpo de Bossa, não tivera maneira de saber qual deles o fizera, portanto, passara todos os três pelo machado. As mãos tremiam-lhe tanto que precisara de dois golpes para silenciar Farejo e quatro para abater Rosnão. O cheiro do sangue pairara pesado, no ar, e os sons que os cães moribundos fizeram tinham sido terríveis de ouvir, mas mesmo assim Rabo-Cortado foi até ele quando o pai o chamara. Era o cão mais velho, e o treino sobrepusera-se nele ao terror. Quando Grumo deslizara para dentro da pele do cão era tarde demais.
Não, pai, por favor, tentou dizer, mas os cães não conseguem falar as línguas dos homens e, por isso, tudo o que saiu foi um ganido digno de dó. O machado abatera-se sobre o meio do crânio do velho cão, e dentro da choupana o rapaz deixara sair um grito. Foi assim que eles souberam. Dois dias mais tarde, o pai arrastara-o para a floresta. Trouxera o machado, e Grumo julgara que tencionava abatê-lo tal como fizera com os cães. Mas em vez disso, dera-o a Haggon.
Varamyr acordou de repente, com violência, com o corpo inteiro tremendo.
— Levanta — estava uma voz gritando — levanta-se, temos de ir. Eles são centenas. — A neve cobrira-o com uma manta rígida e branca. Tão fria. Quando tentou se mover, descobriu que a mão congelara e colara-se ao chão. Deixou alguma pele para trás quando a soltou. — Levanta-se —voltou ela a gritar — eles vêm aí.
Thistle regressara para junto dele. Agarrara-o pelos ombros e estava sacudindo-o, gritando-lhe na cara. Varamyr conseguia cheirar-lhe o hálito e sentir o calor que ele trazia com bochechas adormecidas pelo frio. Agora, pensou, fáça agora ou então morre.
Convocou todas as forças que ainda havia em si, saltou para fora da sua própria pele, e forçou a entrada nela.
Thistle arqueou as costas e gritou.
Abominação. Seria ela, ele ou Haggon? Nunca soube. A sua velha carne voltou a cair no monte de neve quando os dedos dela se descontraíram. A esposa de lanças torceu-se com violência, aos guinchos. O gato-das-sombras de Varamyr costumava combatê-lo selvagemente, e a ursa das neves ficara meio louca durante algum tempo, tentando morder árvores, pedras e ar vazio, mas aquilo era pior.
— Sai, sai! — ouviu a sua própria boca de mulher gritando. O corpo cambaleou, caiu e voltou a se levantar, as pernas abanaram, as mãos sacudiram-se para aqui e para ali, numa dança grotesca qualquer, enquanto o seu espírito e o dela combatiam pela carne. Engoliu um gole de ar gélido, e Varamyr teve meio segundo para rejubilar com o sabor do ar e com a força daquele corpo jovem antes dos dentes dela cerrarem-se com força e lhe encherem a boca de sangue. Ela levou as mãos à cara dele. Tentou empurrá-las de novo para baixo, mas as mãos não queriam obedecer, e ela pôs-se a lhe repuxar os olhos. Abominação, recordou, afogando-se em sangue, dor e loucura. Quando tentou gritar, ela cuspiu a língua de ambos.
O mundo branco girou e caiu. Por um momento, foi como se estivesse dentro do represeiro, olhando através de olhos esculpidos e vermelhos enquanto um moribundo se contorcia debilmente no chão e uma louca dançava cega e ensanguentada, sob a Lua, chorando lágrimas vermelhas e rasgando a roupa. Depois ambos desapareceram e ele viu-se subir, derretendo, com o espírito levado por um vento frio qualquer. Estava na neve e nas nuvens, era um pardal, um esquilo, um carvalho. Um bufo voou em silêncio por entre as suas árvores, caçando uma lebre; Varamyr estava dentro do bufo, dentro da lebre, dentro das árvores. Profundamente enterradas sob o chão gelado, minhocas escavavam cegamente na escuridão, e também eram elas. Sou a floresta, e tudo o que ela contém, pensou exultante. Uma centena de corvos levantou voo, crocitando ao senti-lo passar. Um grande alce trombeteou, perturbando as crianças que se agarravam ao seu dorso. Um lobo gigante adormecido ergueu a cabeça para rosnar ao ar vazio. Antes que os corações de todos eles tivessem tempo de voltar a bater, ele já tinha passado, procurando os seus, procurando Um-Olho, Matreira e Furtivo, procurando a alcateia. Disse a si mesmo que os seus lobos o salvariam.