Esse foi o seu último pensamento enquanto homem.
A morte verdadeira chegou de súbito; sentiu um choque de frio, como se tivesse sido mergulhado nas águas geladas de um lago congelado. Depois deu por si correndo por neves iluminadas pelo luar com os companheiros de alcateia logo atrás de si. Metade do mundo estava escuro. Um-Olho compreendeu. Soltou um latido e Matreira e Furtivo serviram-lhe de eco.
Quando chegaram ao cume, os lobos fizeram uma pausa. Thistle recordou, e uma parte de si sentiu dor por aquilo que perdera, e outra parte pelo que fizera. Em baixo, o mundo transformara-se em gelo. Dedos de geada subiam lentamente pelo represeiro, tentando alcançarem-se uns aos outros. A aldeia vazia já não estava vazia. Sombras de olhos azuis caminhavam por entre os montes de neve. Algumas usavam roupa castanha, algumas preta e algumas estavam nuas, com a pele tornada branca como neve. Um vento suspirava pelas colinas, pesado com os seus odores: carne morta, sangue seco, peles que fediam a mofo, podridão e urina. Matreira rosnou e arreganhou os dentes, com a pelagem na nuca eriçando-se. Não são homens. Não são presas. Aqueles não.
As coisas lá em baixo mexiam-se, mas não viviam. Uma por uma, ergueram as cabeças para os três lobos na colina. A última a olhar foi a coisa que fora Thistle. Usava lã, peles e couro, e por cima disso usava uma cobertura de geada que crepitava quando se mexia e cintilava ao luar. Pálidos pingentes rosados pendiam das pontas dos seus dedos, dez longas facas de sangue congelado. E nos poços onde os seus olhos tinham estado, uma luz azul clara estava tremeluzindo, emprestando às suas feições rudes uma beleza fantasmagórica que nunca tinham conhecido em vida.
Ela me vê.
TYRION
Atravessou o mar estreito bebendo.
O navio era pequeno, a sua cabine menor ainda, mas o capitão não queria deixá-lo subir ao convés. O balançar da coberta sob os pés deixava-lhe o estômago agitado, e a maldita comida sabia ser ainda pior quando voltava para cima num vômito. Mas para que queria ele carne de vaca salgada, queijo duro e pão repleto de vermes quando tinha vinho com que se nutrir? Era tinto e amargo, muito forte. Às vezes também vomitava o vinho, mas havia sempre mais.
— O mundo está cheio de vinho — resmungou na umidade fria da cabine. O pai nunca quis bêbados para nada, mas que importava isso? O pai estava morto. Foi ele que o matara. Um dardo na barriga, senhor, e todo para você. Se eu fosse melhor com uma besta teria atravessado essa pica com que me fizeste, bastardo dum raio. Abaixo do convés não havia nem noite nem dia. Tyrion contava o tempo pelas idas e vindas do criado de bordo que trazia as refeições que não comia. O rapaz trazia sempre também uma escova e um balde, para limpar.
— Isto é vinho de Dorne? — perguntara-lhe Tyrion uma vez, enquanto destampava um odre. — Faz-me lembrar uma certa serpente que conheço. Um tipo engraçado, até que uma montanha lhe caiu em cima.
O criado de bordo não respondeu. Era um rapaz feio, embora Tyrion admitisse que fosse melhor aparecido do que um certo anão com meio nariz e uma cicatriz do olho ao queixo.
— Te ofendi? — perguntara Tyrion, enquanto o rapaz escovava. — Te ordenaram para não falar comigo? Ou será que algum anão te vigarizou a mãe? — aquilo também não obteve resposta. — Para onde nos dirigimos? Diga-me isso. — Jaime mencionara as Cidades Livres, mas não chegara a dizer qual delas. — É Bravos? Tyrosh? Myr? — Tyrion teria preferido ir para Dorne. Myrcella é mais velha do que Tommen, pela lei dornesa o Trono de Ferro é seu. Vou ajudá-la a reclamar os seus direitos como o Príncipe Oberyn sugeriu.
Mas Oberyn estava morto, com a cabeça esmagada até se transformar numa ruína sangrenta pelo punho couraçado de Sor Gregor Clegane. E sem a Víbora Vermelha para instigá-lo a avançar, iria Doran Martell sequer pensar em pôr em prática um plano tão arriscado? Em vez disso, pode me acorrentar e me devolver à minha querida irmã. A Muralha poderia ser mais segura. O Velho Urso Mormont disse que a Patrulha da Noite tinha necessidade de homens como Tyrion. Mas Mormont pode estar morto. Por esta altura pode ser Slynt o Senhor Comandante. Não era provável que aquele filho de carniceiro tivesse se esquecido de quem o enviara para a Muralha. Quer mesmo passar o resto da vida comendo carne de vaca salgada e papas de aveia com assassinos e ladrões? Não que o resto da sua vida fosse durar muito. Janos Slynt trataria disso.
O criado de bordo molhou a escova e continuou esfregando intrepidamente.
— Alguma vez visitaste as casas de prazer de Lys? — inquiriu o anão. — Poderá ser para lá que as rameiras vão? — Tyrion não parecia capaz de recordar a palavra valiriana para rameira, e fosse como fosse era tarde demais. O rapaz voltou a atirar a escova para dentro do balde e retirou-se.
O vinho me enevoou o espírito. Aprendera a ler alto valiriano ainda muito novo, se bem que aquilo que falavam nas Nove Cidades Livres… bem, não era tanto um dialeto, mas nove dialetos a caminho de se transformarem em línguas separadas. Tyrion sabia algum bravosiano e tinha umas noções de myrano. Em tyroshi podia ser capaz de amaldiçoar os deuses, chamar batoteiro a um homem e pedir uma cerveja, graças a um mercenário que conheceu a tempos no Rochedo. Pelo menos em Dorne falam o idioma comum. Tal como acontecia com a comida dornesa e a lei de Dorne, a fala dornesa era temperada com os sabores de Roine, mas um homem compreendia-a. Dorne, sim, para mim é Dorne. Engatinhou para o beliche, agarrando-se a essa ideia como uma criança a uma boneca.
O sono nunca chegava facilmente para Tyrion Lannister. A bordo daquele navio raramente chegava de todo, embora de vez em quando conseguisse beber vinho suficiente para desmaiar durante algum tempo. Pelo menos, não sonhava. Já sonhara o suficiente para uma pequena vida. E com tolices tão grandes: amor, justiça, amizade, glória. Mais valia sonhar com ser alto. Tyrion sabia agora que tudo aquilo estava fora do seu alcance. Mas não sabia para onde iam as rameiras.
— Onde quer que as rameiras vão — dissera o pai. As suas últimas palavras, e que palavras elas foram. A besta soltara um tuang, Lorde Tywin voltara a se sentar, e Tyrion Lannister dera por si a bambolear-se pelas trevas com Varys a seu lado. Devia ter voltado a descer a chaminé, duzentos e trinta degraus até ao local onde brasas cor de laranja brilhavam na boca de um dragão de ferro. Não se lembrava de nada disso. Só do som que a besta fizera, e do fedor das tripas do pai se abrindo. Até na morte arranjou maneira de cagar em mim.
Varys o acompanhara pelos túneis, mas não se falaram até saírem junto à Água Negra, onde Tyrion conquistara uma vitória famosa e perdera um nariz. Foi então que o anão virara-se para o eunuco e dissera “Matei o meu pai,” no mesmo tom que um homem poderia usar para dizer “Dei uma topada com o pé.”
O mestre dos murmúrios estava vestido como um irmão mendicante, trajando uma túnica castanha de tecido grosseiro comido pelas traças, com um capuz que lhe escondia as bochechas lisas e gordas e a cabeça careca e redonda.
— Não devia ter subido aquela escada — dissera, numa censura.
— Onde quer que as rameiras vão. — Tyrion avisou o pai para não dizer aquela palavra. Se não tivesse disparado, ele teria visto que as minhas ameaças eram ocas. Teria me tirado a besta das mãos, como um dia me tirou Tysha dos braços. Estava se levantando quando o matei.