Ficou segurando a mão do menino enquanto tropeçavam pela floresta. A outra mão ele estendia diante de si. Não enxergaria pior se estivesse de olhos fechados. O menino estava embrulhado no cobertor e ele lhe disse para não deixá-lo cair porque nunca mais voltariam a encontrá-lo. Ele queria ser carregado mas o homem lhe disse que ele tinha que continuar andando. Eles tropeçaram e caíram pela floresta durante toda a noite e bem antes do nascer
do sol o menino caiu e não se levantou mais. Ele o envolveu em sua própria parca e o envolveu no cobertor e ficou sentado abraçado a ele, embalando-o para a frente e para trás. Uma única bala restava no revólver. Você não quer encarar a realidade. Não quer encarar.
Na luz incerta que passava por dia ele colocou o menino sobre as folhas e ficou sentado examinando a floresta. Quando ficou um pouco mais claro ele se levantou e caminhou e descreveu um perímetro ao redor do acampamento selvagem deles em busca de sinais mas além de sua própria trilha tênue através das cinzas não viu nada. Voltou e levantou o menino. Temos que ir, ele disse. O menino ficou sentado abaixado, o rosto inexpressivo. A sujeira seca em seu cabelo e seu rosto com veios de sujeira. Fale comigo, ele disse, mas ele não falava.
Rumaram para leste em meio às árvores mortas, ainda de pé. Passaram por uma velha casa de estrutura de madeira e cruzaram uma estrada de terra. Um pedaço de terreno limpo talvez outrora um jardim. Parando de tempos em tempos para tentar escutar. O sol invisível não projetava sombras. Eles chegaram à estrada inesperadamente e ele parou o menino com uma das mãos e eles se agacharam na vala da beira da estrada como leprosos e se puseram a escutar. Nenhum vento. Silêncio absoluto. Depois de algum tempo ele se levantou e caminhou até a estrada. Olhou para o menino lá atrás. Venha, ele disse. O menino se aproximou e o homem apontou para as marcas nas cinzas por onde o caminhão tinha passado. O menino ficou de pé embrulhado no cobertor olhando para o chão.
Ele não tinha como saber se eles haviam conseguido fazer o caminhão funcionar outra vez. Não tinha como saber por quanto tempo estariam dispostos a ficar aguardando, numa emboscada. Tirou a mochila do ombro com o dedo e se sentou e a abriu. Precisamos comer, ele disse. Está com fome?
O menino sacudiu a cabeça.
Não. E claro que não. Ele tirou dali a garrafa d’água de plástico e desatarraxou a tampa e estendeu-a, e o menino a apanhou e ficou de pé bebendo. Abaixou a garrafa, tomou fôlego, se sentou na estrada e cruzou as pernas e bebeu novamente. Então devolveu a garrafa e o homem bebeu e atarraxou a tampa outra vez e vasculhou dentro da mochila. Comeram uma lata de feijão branco, passando-a de um para o outro, e ele jogou a lata vazia na floresta. Seguiram novamente pela estrada.
As pessoas do caminhão tinham acampado na própria estrada. Tinham feito uma fogueira ali e pedaços queimados de madeira jaziam enfiados no asfalto derretido junto com cinza e ossos. Ele se agachou e colocou a mão por cima do asfalto. Um calor suave desprendendo-se dali. Pôs-se de pé e olhou para a estrada adiante deles. Então levou o menino consigo para o interior da floresta. Quero que você espere aqui, ele disse. Não vou estar longe. Vou poder te ouvir se você chamar.
Me leva com você, o menino disse. Parecia estar prestes a chorar.
Não. Quero que você espere aqui.
Por favor, Papai.
Pare. Quero que você faça o que estou dizendo. Pegue a arma.
Não quero a arma.
Não te perguntei se você queria. Pegue.
Ele caminhou pela floresta até o lugar onde tinham deixado o carrinho. Ainda estava ali mas tinha sido pilhado. As poucas coisas que não tinham levado espalhadas sobre as folhas. Alguns livros e brinquedos que pertenciam ao menino. Seus sapatos velhos e uns trapos de roupas. Endireitou o carrinho e colocou as coisas do menino ali dentro e o empurrou até a estrada. Depois voltou. Não havia nada ali. Sangue seco e escuro nas folhas. A mochila do menino tinha sumido. Voltando ele encontrou os ossos e a pele empilhados juntos com pedras por cima. Uma poça de vísceras. Ele empurrou os ossos com a ponta do sapato. Pareciam ter sido cozidos. Nenhuma peça de roupa. A escuridão estava voltando e já fazia muito frio e ele se virou e foi para onde tinha deixado o menino e se ajoelhou e passou os braços ao redor dele.
Empurraram o carrinho pela floresta até onde ia a estrada velha e deixaram-no ali e se encaminharam para o sul ao longo da estrada apressando-se antes que escurecesse. O menino estava tropeçando de tão cansado e o homem pegou-o e o passou por cima do ombro e seguiram em frente. Quando chegaram à ponte já mal havia luz. Ele colocou o menino no chão e eles encontraram seu caminho tateando, descendo pelo aterro. Sob a ponte ele pegou o isqueiro, acendeu-o e varreu o chão com a luz bruxuleante. Areia e cascalho trazidos pelo riacho. Ele colocou no chão a mochila e apagou o isqueiro e segurou o menino pelo ombro. Mal podia divisá-lo na escuridão. Quero que você espere aqui, ele disse. Vou procurar madeira. Temos que acender uma fogueira aqui.
Estou com medo.
Eu sei. Mas eu só vou demorar um pouquinho e vou poder te ouvir então se ficar com medo pode me chamar que eu venho no mesmo instante.
Estou com muito medo.
Quanto mais cedo eu for mais cedo vou voltar e vamos ter uma fogueira e você não vai mais ficar com medo. Não se deite. Se você se deitar vai adormecer e então se eu te chamar você não vai responder e eu não vou conseguir te encontrar. Está entendendo?
O menino não respondeu. Ele estava a ponto de perder a paciência quando percebeu que ele balançava a cabeça na escuridão. Está bem, ele disse. Está bem.
Escalou a encosta e voltou para a floresta, mantendo as mãos estendidas à sua frente. Havia mata em toda parte, ramos mortos e galhos espalhados pelo chão. Ele caminhava arrastando os pés e chutando-os até formar uma pilha e quando já tinha uma braçada ele se abaixou e apanhou tudo e chamou o menino e o menino respondeu e falou com ele até que ele conseguisse voltar para a ponte. Ficaram sentados no escuro enquanto ele aparava espetos com sua faca e formava uma pilha e quebrava os galhinhos com a mão. Tirou o isqueiro do bolso e girou a roda com o polegar. Ele usava gasolina no isqueiro e ele queimava com uma chama azul e fraca e ele se curvou e acendeu a isca e observou enquanto o fogo subia através dos ramos. Empilhou mais madeira e se curvou e soprou de leve na base do pequeno lume e arrumou a madeira com as mãos, ajeitando a fogueira.
Fez mais duas viagens à floresta, arrastando braçadas de mato seco e ramos para a ponte e empurrando-as pela lateral. Podia ver o lume do fogo de alguma distância mas não achava que podia ser visto da outra estrada. Abaixo da ponte ele podia divisar um poço escuro de água parada em meio às pedras.Uma beira de gelo se formando.Ficou de pé na ponte e empurrou a última pilha de madeira, sua respiração branca sob o lume da fogueira.
Sentou-se na areia e fez um inventário do conteúdo da mochila. O binóculo. Um frasco de meio quartilho de gasolina quase cheio. A garrafa d’água. Um alicate. Duas colheres. Colocou tudo numa fileira. Havia cinco latinhas de comida e ele escolheu uma lata de salsichas e uma de milho e abriu-as com o pequeno abridor de latas do exército e colocou-as na beira da fogueira e ficou observando os rótulos queimando e se enroscando. Quando o milho começou a fumegar ele pegou as latas do fogo com o alicate e se sentaram debruçados sobre elas com suas colheres, comendo devagar. O menino estava dando cabeçadas de sono.