Quando tinham comido ele levou o menino para a faixa de cascalho embaixo da ponte, empurrou com um graveto a fina camada de gelo da superfície e se ajoelharam enquanto ele lavava o rosto e o cabelo do menino. A água estava tão fria que o menino chorava. Afastaram o cascalho para encontrar água limpa e ele lavou o cabelo dele de novo da melhor forma que conseguiu e finalmente parou porque o menino gemia com o frio da água. Enxugou-o com o cobertor, ajoelhando-se ali no brilho da luz com a sombra da estrutura inferior da ponte se projetando na paliçada de troncos de árvores para além do riacho. Este é o meu filho, ele disse. Eu lavo os miolos de um homem morto do seu cabelo. Essa é a minha tarefa. Então ele o embrulhou no cobertor e o levou para a fogueira.
O menino ficou sentado vacilando. O homem o observava para que ele não caísse em cima das chamas. Abriu com o pé buracos na areia para os quadris e para os ombros do menino onde ele dormiria e ficou abraçado a ele enquanto mexia em seu cabelo diante do fogo para secá-lo. Tudo isto feito uma antiga extrema-unção. Que seja então. Evoque as formas. Onde você não tem mais nada construa cerimônias do ar e sopre nelas.
Ele acordou no meio da noite com o frio e se levantou e quebrou mais madeira para o fogo. Os vultos de raminhos de árvore queimando com um alaranjado incandescente nos carvões. Soprou nas chamas até avivá-las, empilhou a madeira e ficou sentado com as pernas cruzadas, apoiado no pilar de pedra da ponte. Pesados blocos de calcário empilhados sem argamassa. Lá em cima as ferragens marrons de ferrugem, os rebites presos com martelo, os dormentes e as vigas transversais de madeira. A areia onde ele se sentava estava morna ao toque mas a noite para além da fogueira era de um frio lancinante. Ele se levantou e arrastou mais madeira para baixo da ponte. Ficou de pé escutando. O menino não se movia. Ele se sentou ao lado dele e afagou seu cabelo pálido e embaraçado. Cálice dourado, próprio para hospedar um deus. Por favor não me diga como a história termina. Quando ele olhou outra vez para a escuridão para além da ponte estava nevando.
Toda a madeira que tinham para queimar era madeira fina e a fogueira ficaria acesa por não mais do que uma hora ou talvez um pouco mais. Ele arrastou o resto do mato para debaixo da ponte e partiu-o, ficando de pé em cima dos ramos e rachando-os no comprimento. Achou que o barulho fosse acordar o menino, mas não acordou.
A madeira molhada sibilava nas chamas, a neve continuava a cair. Pela manhã eles veriam se havia rastros na estrada ou não. Aquele havia sido o primeiro ser humano além do menino com quem ele falava em mais de um ano. Meu irmão pelo menos. Os cálculos traiçoeiros naqueles olhos frios e rápidos. Os dentes cinzentos e apodrecidos. Com carne humana grudada. Que transformou o mundo numa mentira a cada palavra. Quando ele voltou a acordar a neve tinha parado e a aurora granulosa delineava a floresta para além da ponte, as árvores pretas contra a neve. Ele estava deitado encurvado com as mãos no meio dos joelhos e se sentou e alimentou a fogueira e colocou uma lata de beterrabas nas brasas. O garoto o observava encolhido no chão.
A neve recente estava caída em montes em toda parte na floresta, ao longo dos ramos e empilhada nas folhas, toda ela já suja com as cinzas. Eles caminharam até onde tinham deixado o carrinho e ele colocou a mochila nele e empurrou-o até a estrada. Nenhuma marca de rodas. Ficaram parados escutando no silêncio absoluto. Então partiram pela estrada através da neve suja e cinzenta, meio derretida, o menino ao lado dele com as mãos nos bolsos.
Caminharam com dificuldade durante o dia inteiro, o menino em silêncio. A tarde a neve cinzenta já tinha derretido na estrada e à noite ela já estava seca. Não pararam. Quantos quilômetros? Dez, vinte. Costumavam jogar malha na estrada com quatro arruelas grandes de aço que tinham encontrado numa loja de ferragens mas elas tinham sumido junto com tudo mais. Naquela noite acamparam numa ravina e fizeram uma fogueira junto a uma pequena ribanceira de pedra e comeram sua última lata de comida. Ele a havia deixado por último porque era a favorita do menino, porco e feijão. Observaram-na borbulhar lentamente sobre os carvões e ele pegou a lata com o alicate e comeram em silêncio. Ele lavou a lata vazia com água e deu-a para o menino beber e foi tudo. Eu devia ter tomado mais cuidado, ele disse.
O menino não respondeu.
Você tem que falar comigo.
Está bem.
Você queria saber como eram os caras do mal. Agora já sabe. Pode acontecer de novo. Minha tarefa é tomar conta de você. Eu recebi essa tarefa de Deus. Vou matar qualquer um que toque em você. Está entendendo?
Estou.
Ele ficou sentado ali encapuzado com seu cobertor. Depois de algum tempo levantou os olhos.
Nós ainda somos os caras do bem? ele disse.
Somos. Ainda somos os caras do bem.
E sempre vamos ser.
Sim. Sempre vamos ser.
Está bem.
Pela manhã eles saíram da ravina e seguiram pela estrada novamente. Ele tinha entalhado para o menino uma flauta com um pedaço de bambu de beira de estrada e tirou-a do casaco e deu-a a ele. O menino a apanhou sem dizer nenhuma palavra. Depois de algum tempo ficou para trás e o homem pôde ouvi-lo tocando. Uma música informe para a era que estava para vir. Ou talvez a última música na Terra fosse evocada das cinzas de sua ruína. O homem se virou e olhou para ele, lá atrás. Estava perdido em sua concentração. O homem pensou que ele parecia alguma criança trocada, um
changeling,
perdido e solitário, anunciando a chegada de um espetáculo itinerante em vilarejos e aldeias, sem saber que atrás dela os atores foram todos levados pelos lobos.
Ele estava sentado de pernas cruzadas sobre as folhas no topo de uma serrania e vasculhava o vale lá embaixo com o binóculo. A forma imóvel e derramada de um rio. As hastes negras de tijolos de um moinho. Tetos de ardósia. Uma velha torre d’água presa com arcos de ferro. Nenhuma fumaça, nenhum movimento de vida. Abaixou o binóculo e ficou sentado observando.
O que você está vendo? o menino disse.
Nada.
Entregou-lhe o binóculo. O menino passou a correia por trás do pescoço, colocou-o junto aos olhos e ajustou o foco. Tudo ao redor deles parecia tão imóvel.
Estou vendo fumaça, ele disse.
Onde.
Atrás daquelas construções.
Que construções?
O menino devolveu o binóculo e ele reajustou o foco. Um fiapo tênue. Sim, ele disse. Estou vendo.
O que a gente devia fazer, Papai?
Acho que devíamos dar uma olhada. Só temos que ser cuidadosos. Se for uma comuna eles terão barricadas. Mas pode ser que sejam só refugiados.
Como nós.
Sim. Como nós.
E se forem os caras do mal?
Vamos ter que correr o risco. Precisamos encontrar alguma coisa para comer.
Deixaram o carrinho na floresta e cruzaram um trilho de ferrovia e chegaram a uma encosta íngreme através de hera seca e negra. Ele levava o revólver na mão. Fique perto, falou. Ele obedeceu. Avançaram pelas ruas feito saqueadores. Um quarteirão de cada vez. Um leve cheiro de fumaça de madeira no ar. Esperaram numa loja e ficaram observando a rua mas nada se movia. Atravessaram o lixo e o entulho. Gavetas de armário espalhadas pelo chão, papel e caixas de papelão inchadas. Não encontraram nada. Todas as lojas tinham sido saqueadas anos antes, as janelas já praticamente não tinham vidro. Lá dentro estava quase escuro demais para enxergar. Subiram os degraus de aço com nervuras de uma escada rolante, o menino segurando sua mão. Uns poucos ternos empoeirados pendendo de uma arara. Procuraram por sapatos mas não havia nenhum. Vasculharam entre o lixo mas não havia nada ali que um dos dois pudesse usar. Quando voltaram ele tirou os paletós dos ternos de seus cabides e sacudiu-os e os dobrou por cima do braço. Vamos, ele disse.